Mal de Montano

dezembro 8, 2010

Amor é tema de ‘O Acidente’, de Ismail Kadaré

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Escritor aborda assunto raro em seu trabalho, o amor, sem deixar de explorar seus temas preferidos

26 de junho de 2010 | 6h 00
Andrei Netto, correspondente em Paris
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Ismail Kadaré em Oviedo, por ocasião da cerimônia de entrega do Prêmio Príncipe de Astúrias

PARIS – Não seria exagero descrever O Acidente, último romance de Ismail Kadaré, que acaba de ser lançado no Brasil, como singular. Trata-se, para ser mais preciso, da exceção da exceção. A primeira, é seu tema: o amor. Poucos, ou talvez nenhum dos 45 romances escritos por Kadaré ao longo de quase 50 anos de carreira, explorou de forma tão desvelada, tão direta, os mistérios e alternativas da relação entre um homem, Bessfort, e uma mulher, Rovena. Sua história, claro, não prescinde da hipervigilância do Estado, da ideia de conspiração, da paranoia oficial que sequestra a verdade, temas que servem como fio condutor na literatura do mestre albanês. Mas é o amor, ou melhor, um beijo, o seu ponto de partida.

linkLeia trecho do romance ‘O Acidente’, de Ismail Kadaré

A segunda exceção, é, claro, sua grife. Ismail Kadaré é apontado por críticos de todo o mundo como um dos injustiçados pelo Prêmio Nobel. Diante da perspectiva de encontrar um dos ficcionistas mais respeitados do globo, não há outra alternativa além de devorar seus livros mais essenciais, informar-se sobre sua vida, suas influências estéticas e suas tendências artísticas mais recentes.

Entretanto, ao ser recebido por Kadaré em sua residência no Boulevard Saint-Michel, em Paris, dogmas jornalísticos ficam à porta. Aos 74 anos, o escritor mostra-se falante e descontraído. Com esse espírito, toma a dianteira e faz a primeira pergunta. Fica tácito, então: esta será uma conversa, não uma entrevista.

“Quais são os meus livros que saíram no Brasil?”, indaga ele, interessado. Não tenho certeza de quantos sejam, mas sei que alguns dos seus maiores sucessos saíram. Respondo que Dossiê H, Crônica na Pedra, Os Tambores da Chuva, Abril Despedaçado fazem parte da coleção. “Agora sai O Acidente”, lembro, sem ainda saber que me referia a uma de suas obras “irretocáveis”. Kadaré não tarda em informar que não quer falar sobre seus livros em particular. Por quê? “Isso me aborrece”, argumenta. Mas faz uma ressalva: aceita conversar sobre literatura.

Imagino que o senhor não consiga acompanhar o volume de novas publicações de seus livros, já que há títulos em mais de 40 línguas.

Não, é difícil. São mais de 40 línguas, e além disso há títulos demais. Há em média um novo livro por semana em todo o mundo. Se cada país publica um livro por ano, mais edições de bolso… Suponhamos que sejam 15 ou 20 as obras que são traduzidas – há muito mais, mas suponhamos que sejam 15 ou 20. Dá em média um livro por semana ou a cada 10 dias. É um volume enorme.

E o que esse sucesso mundial quer dizer?

Um prazer. Todos os escritores amam o sucesso. Afinal, o que é a literatura? É algo que fazemos para os outros, e não para nós mesmos. A qualidade número 1 deste tesouro espiritual da humanidade é que escritores de cada povo, de cada país, fazem isso por si mesmos, mas ao mesmo tempo pelos outros. O sucesso é global, e é extraordinário. Às vezes, publicar é mais importante pelos outros do que por você mesmo. E quando se publica no exterior, o prazer é imenso, porque as traduções são sempre frescas e contemporâneas.

Por favor, fale mais sobre isso.

William Shakespeare, o maior de todos, por exemplo. Lê-lo é mais cômodo para os outros do que para os ingleses. Por quê? Porque quatro séculos se passaram, e a língua inglesa mudou. Os outros países fazem traduções contemporâneas, frescas, novas, e fruem de uma forma perfeita. Enquanto o país que engendrou o escritor é obrigado a ler em uma língua antiga. É o mesmo caso de Dom Quixote. Todos os outros países leem traduções atualizadas. Os espanhóis leem como há séculos atrás.

O senhor tem uma obsessão pela atualidade de uma obra? É por isso que atualiza alguns de seus livros?

Não, de maneira nenhuma. Retocá-los é um processo natural dos escritores. Sempre que têm ocasião de aperfeiçoar as coisas, eles o fazem. Claro, depende do livro e do escritor, mas a maioria o faz. Sobre mim, houve um mal-entendido enorme: diziam que eu mudava os livros após a queda do comunismo. É uma mentira absoluta. A maior parte das mudanças que fiz, em diferentes edições, foi durante o regime comunista. O livro que eu mais fiz retoques, O General do Exército Morto (1963), publiquei cinco vezes, sempre durante o mesmo regime. Não mudei por motivos políticos. Na Albânia, o regime continuava a ler meus textos com lupa. Mas as mudanças que fiz, os retoques, sempre foram artísticos, e não políticos.

Mas o que lhe move a retocar seus livros, que alcançam sucesso mundial?

Eu sou perfeccionista. Há livros que não acho que devam ser modificados. Outros em que vejo imperfeições, algo a mais, coisas não bem explicadas. Mas é normal. Balzac, por exemplo, é uma história de montagem interminável. O dia todo ele adicionava algo, cortava algo. Todos os escritores fazem isso, ou a maior parte. Alguns morrem muito jovens e não têm o tempo. Dante Alighieri trabalhou 20 anos para escrever a Divina Comédia. São 20 anos para um poema! Mas, nessa época, não existia a imprensa. Para os escritores, era mais fácil mudar os manuscritos.

O que lhe incomoda mais em um livro que o senhor tenha escrito: o texto, o estilo, a história?

Tudo. É algo inexplicável. É um tema de estudo para os professores de universidades. Para os autores, é algo ridículo. É uma mistura secreta, que mesmo um escritor não consegue explicar.

Isso faz de seu trabalho uma obra em movimento?

Não, de maneira alguma. Cada obra literária é algo estável. Mas, quando o escritor é vivo, é normal que ele revise sua obra. Claro, isso depende de seu destino, de sua vida, de sua idade, de vários fatores.

Cite um exemplo de seus livros que o senhor gosta de reler.

O General do Exército Morto, meu primeiro livro, que teve sucesso. Sua composição pitoresca, que descrevia a viagem de um general, um personagem que muda o tempo todo, que está em movimento. Neste caso, você fica tentado a retocar algumas coisas de tempos em tempos. Outros romances são inertes. Quando escrevi O General… eu era muito jovem, tinha 25, 26 anos. Me faltava o domínio da escrita. Tinha acabado meus estudos superiores em Moscou, retornado à Albânia e escrito. Logo após a publicação, foi muito mais fácil constatar seus defeitos.

Por quê?

Porque quando a obra é um manuscrito você tem uma relação íntima com ela. É sua escrita, mesmo que seja datilografada. Quando ela é editada, quando ganha a forma em que o público vai ler, ela perde imediatamente a intimidade com seu autor. Você é um estrangeiro. Os caracteres, os papéis, as capas são iguais aos de todos os livros. E você constata que não tem mais privilégios em relação a sua obra. Você vê seus defeitos. É muito fácil. Mas há uma fase ainda mais interessante: a tradução do livro em uma língua estrangeira.

Em que sentido é mais interessante?

Por exemplo, após a publicação de O General…, eu o reli e disse a mim mesmo: “Meu Deus, está cheio de defeitos!” Fiz marcações por tudo, sinais para adicionar algumas coisas, para retirar outras, para reescrever. Massacrei uma cópia com mudanças. Dois anos depois, ela foi reeditada com retoques importantes. A seguir, essa edição foi traduzida na França. Nessa época, eu já lia em francês. Peguei uma cópia e fiquei horrorizado! Ele não me agradou nada de novo, apesar de seu sucesso. Porque, em uma língua estrangeira, o livro se torna duas vezes mais estrangeiro para o escritor. Não é mais sua língua, e você vê os defeitos. Fiz a mesma coisa: recomecei a fazer retoques. Meus amigos me diziam: “Ou você é louco, ou é egocêntrico, ou talvez paranoico.” Eu não estava contente. Fiz os retoques. Enviei-os a todos os editores que tinham contratos para meus livros, dizendo: “Eu sou o autor deste romance. Após a publicação de sua versão francesa, constatei muitos defeitos e fiz alguns retoques.” Era meio ridículo. Nessa época, a metade da Europa tinha contratos para publicar meus livros, mas eu os orientei a traduzirem a partir da versão francesa. As respostas voltaram: “Os retoques são maravilhosos”, diziam. Fiquei realmente feliz. É sempre possível aperfeiçoar um romance. Com Crônica na Pedra (1970), foi a mesma história. Já O Palácio dos Sonhos (Le Palais des Rêves, 1981) quase não retoquei. Estava contente.

Os romances que o senhor não retocou foram os que tiveram melhor acolhida da crítica?

Não, não houve nenhuma relação entre uma coisa e outra. Por exemplo, Le Palais des Rêves foi proibido pela crítica na Albânia. Depois, eu não o mudei em nada. Não foi papel da crítica oficial, de maneira nenhuma. Outro exemplo: o pior dos meus romances, La Noce (1967), foi a única coisa que escrevi que se parecia com o realismo socialista. Não havia o desespero. Tinha uma atmosfera otimista. A crítica albanesa se entusiasmou. Então compreendi que havia cometido um erro.

Incomoda-lhe a afirmação de que tenha feito mudanças de acordo com a evolução do regime político, certo?

Sim, muito. Como eu poderia mudar o conteúdo político de uma obra? Tenho um romance que se chama L’Hiver de la Grande Solitude (1973). É a história da ruptura entre a Albânia e a União Soviética, um dos mais conhecidos romances do mundo. E é uma obra com cenas políticas muito fortes. Não posso mudar nada nesse livro. Há personagens, chefes políticos russos e albaneses, que travam o debate. Como poderia mudar algo? Seria uma loucura se o retocasse.

E em O Acidente, o que o senhor retocaria?

Nada. Quanto mais o tempo passa, menos tenho vontade de fazer retoques. As obras que publiquei nos últimos 10 ou 15 anos não foram retocadas.

O que isso quer dizer: que o senhor as aprecia como estão, ou o contrário?

Não sei. É difícil falar de meus livros.

Eu soube que o senhor de fato não gosta de falar de seus livros. Por quê?

Não sei, não gosto. É uma espécie de aborrecimento. O que falaria por um livro? Vivi sobre ele durante um ano. Está encerrado. É algo do passado. Voltar a ele para explicá-lo é um sofrimento. Posso falar de episódios grotescos, como os retoques em O General…, porque é algo de sua existência, algo anedótico, inabitual. Mas explicar o livro… não… Não gosto disso. Alguns escritores gostam. Eu não.

Falemos dos temas de seus livros, então. O senhor mencionou desespero, ou uma espécie de tristeza intrínseca…

… Desespero não é a boa palavra. Diria tristeza mesmo. Eu vivia em um país noir, triste. Uma das críticas que me eram feitas sempre, um clichê no Ocidente, era questionar porque sempre chove em meus romances, como em O General… Ora, essa é uma questão muito delicada. Para mim, era desagradável respondê-la. Diziam que a Albânia era um país muito ensolarado, luminoso, com um clima ótimo. O que eu deveria responder? Que a atmosfera de meus livros não era apenas relacionada ao clima, mas à ambiência, ao que se passava em meu país? Não posso dizer isso. A pergunta não era uma provocação, mas tomava os ares de uma, porque nós vivíamos em uma situação difícil na Albânia.

E o otimismo era uma das características da literatura socialista que o senhor quase nada praticou, certo? Apenas em La Noce.

Exatamente. O partido, a ideologia, pedia aos escritores: “Sejam otimistas, escrevam para o futuro, pela saúde psíquica do povo. Não façam como a literatura burguesa, decadente, na qual os personagens são tristes, desesperados.” A atmosfera primaveril, alegre, era uma das características da literatura socialista. Na minha literatura, eu tentava fazer o contrário, marcando-a por uma ambiência pesada. O único romance em que eu não respeitei minhas convicções foi La Noce.

A escolha desta atmosfera noir foi intuitiva ou racional?

Primeiramente foi intuitiva. Eu compreendia que vivia em um país anormal. Mas a atmosfera estava em harmonia intuitiva com o sujeito, com o meu espírito, com o da metade da população. Em uma ditadura, a metade é a favor, outra metade é contra, porque sofreu as consequências. Sempre fui criticado pela melancolia, pela falta do herói positivo. Uma das orientações era de que o herói positivo deveria ser dominador na literatura. Mas o herói positivo, o modelo, é uma peste. Para a literatura, eles são muito negativos, mortais mesmo. Diga uma obra em que o herói positivo foi positivo na literatura ou no teatro grego? É muito raro. Mesmo os mais conhecidos, como Fausto, de Goethe, eram metade a metade. Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, era o herói positivo por excelência, mas a população, a mentalidade não o via dessa forma. Vale o mesmo para os atos positivos. Eles não são interessantes para a literatura. Eis a contradição inerente da literatura: ela funciona pelo negativo.

Nesse sentido, a atmosfera autoritária de seu país favoreceu a sua escrita?

Não creio que seja necessário viver o negativo para escrever sobre ele. O planeta é muito pequeno. Mesmo se não vivemos coisas negativas, nós, escritores, sabemos muito bem o que é o negativo. O mal no mundo está sempre próximo, mesmo em um país livre – ou relativamente livre, porque não existem países livres. Os escritores sabem bem da realidade, mesmo que por intuição. Mesmo em um país livre você é obrigado a saber o que é o mal. E o contrário: mesmo em um país em que se vive o autoritarismo, você é obrigado a saber o que é a liberdade. Não há álibis.

Como ser universal em uma realidade fechada ao mundo exterior?

É possível. Depende de sua relação com a literatura. A relação de um escritor com a literatura em um país difícil é parecida com a de um religioso com a religião: é preciso crer. Se você crê, está salvo. Se você não crê, está morto. Se você crê na literatura, é como crer na vida eterna; você está feliz, tem uma segunda consciência. Daí a comparação com a religião, na qual se pode relativizar tudo. Na literatura, como na religião, somos nós mesmos, temos uma espécie de paz interior. O fundo é o mesmo: a crença. Cremos em algo quase divino, eterno, mesmo se não o aceitamos de forma racional. Ser escritor é sua profissão, é do que você é feito, é sua segunda natureza. Tudo lhe dá universalidade. Não é megalomania, é apenas você. Sobre mim, eu vivia em um país sem liberdade, mas me sentia obrigado a expor um quadro da vida, como cidadão do mundo. Era difícil, claro, mas era preciso tentar fazê-lo. É difícil viver em um país anormal e fazer literatura normal. Aliás, é a chave do problema: tentar escrever de maneira normal, quando a realidade é terrível.

Mas o escritor livre não agrada aos autoritários.

Os comunistas diziam: “Você, como escritor, deve ser igual a todo mundo. Deve manter a cabeça baixa. Deve aprender com o povo.” Mas o que eu devo aprender com o povo? Mesmo que seja um bilhão de pessoas, na literatura eu estou sozinho. Não escrevo com a ajuda do povo, nem de ninguém. Faço com a ajuda da literatura. Me interesso pelas pessoas por mil motivos. Mas não para aprender sobre literatura. O recado era uma idiotia total. Era um meio de cercear o escritor, privá-lo de liberdade, de individualidade, um meio de dizer que você não é nada. Em uma ditadura, são os dirigentes que devem ter o poder político e espiritual. O poder é ciumento em uma ditadura. Ele não pode aceitar a partilha, muito menos com escritores. O poder e o escritor são duas forças contraditórias, incompatíveis.

Em O Acidente, vemos a presença do Estado, uma certa vigilância, uma paranoia que é frequente em outros de seus livros. Mas ele tem o amor como tema, algo raro em sua obra. Por que falar sobre o amor?

De tempos em tempos, há motivos de amor e de relações em meus livros. Não é porque vivi em um país tirânico que não escrevi mais sobre o amor. Não é uma razão política. É a natureza da minha escrita, da minha literatura. Tomemos Dom Quixote como exemplo de uma obra-prima universal: o amor é uma pequeníssima parte, e mesmo assim um tanto caricatural, grotesca. Nos poemas homéricos há muito pouco sobre o amor, apenas algumas linhas. Às vezes, a literatura fala muito sobre o amor. Outras vezes, ela se retira. Não posso explicar por quê. Não participo desse debate. Não escrevo muito sobre o amor, mas não sinto um impedimento.

O senhor se sentia livre para falar sobre o amor na Albânia comunista?

Em um regime como o albanês, o que era aceito era uma expressão esquemática, clichê do amor. Em primeiro lugar, o erotismo estava excluído, porque era visto como pornografia, como a decadência ocidental. Na realidade, era uma forma de reduzir o desejo de escrever literatura. O amor deveria ser apresentado como uma lição de moral. Não era possível colocar em sua obra uma mulher “imoral”, instigante para a literatura. Uma heroína positiva deveria ser apaixonada pelo comunismo, pelo mundo futuro, pela sociedade, militante. Os escritores não têm vontade de escrever, tamanhas são as limitações. Seria deformado, pouco natural.

 

agosto 1, 2010

Resenha – Os suicidas – Antonio Di Benedetto

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01 Agosto, 2010

Entendidos, mal entendidos, desentendidos e tolos

Para Fernanda de Aragão e Ramirez

por Solange Pereira Pinto

Cerrado gelado, julho/2010.

sollpp@gmail.com

“A única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior” (Laing)

 

 

 

Mês qualquer de 2007. A pilha de notícias recortadas amiúde, como diria o Zé Ramalho, me olhava naquele sábado. Vontade louca de ler. Daquelas que somente os fins de semana me permitem realizar em compulsão. Do jeito que eu gosto. Uma possível página amarelada de jornal, daquelas que a gente obsessivamente guarda para ler depois (provavelmente do caderno Dois ou da Ilustrada), me deu piniqueira. Uma comichão de desejo de ler. Titulo ponta de lança. Direto ao assunto. Lancei na lista.

No Brasil a partir de 2005, vagava pela Argentina desde 1967. Ano em que nasci. A fórceps. Na epígrafe a sentença de Albert Camus que eu viria a conhecer somente em 2010: “Todos os homens sãos pensaram em suicídio alguma vez”. Li 42 anos depois por terceiras mãos. “O meu pai pôs fim à sua vida numa tarde de sexta-feira. Tinha 33 anos. Na quarta sexta-feira do próximo mês eu terei a mesma idade”, ele me contou, o jornalista medíocre. Começava a sina. Dele. Minha. Nossa.

Por três anos. Em duas mudanças de apartamento ele não se perdeu. Mas precisou de uma preciosa visita jogar Antonio Di Benedetto novamente em meus braços. Ele, que sempre esteve ali, mirando na altura do meu queixo, diariamente, mais se fez notar esmagado entre a poeira dos tablóides do que em sua postura entrosadamente deitada. Tranqüilo. Alaranjado em meio a José Luis Peixoto e Luiz Antonio de Assis Brasil. “Ver claro é muito difícil”;

Sua conversa sem aspas, ou outros sinais, e direta me atraiu rapidamente. Como nos momentos fáticos dos pontos de ônibus ou elevadores nos quais nos vemos monossilábicos e atamancando as palavras. Entre um respiro e outro. “Tem razão. Trabalhe com Marcela. Por que a Marcela? Lembra, a reportagem do avião caído na cordilheira. Sabe se arriscar. Neste assunto não haverá riscos, vamos lidar com mortos. Não haverá? Assim espero. Quem sabe”. Sem travessões.

Fernanda queria um livro para passar o tempo enquanto eu trabalhava ou dormia. Rotina de visitante, de feriado. Uma semana entremeando 164 páginas. Por que Tiflis e Pizarro não suportaram viver? Qual é o mistério daqueles que se matam? Haveria sete dias para ela conhecer os rumos de Júlia, Mercedes, Bibi, Paolo, Maurício e outros. Tempos depois Fernanda me disse a literatura lhe ajudava a esperar meu alerta. As horas acabarem. Desentendi. “Justamente, ontem à noite sonhei de novo que estava andando nu”. Por muitas vezes isso se repetiria. Conosco.

O encontro do novo grupo de literatura viria acontecer somente quatro meses depois que a Fer tinha voltado para São Paulo. Eu e alguns amigos tínhamos inaugurado o bate-papo com “A Trégua”, do quase homônimo, o uruguaio, Benedetti. E, no mesmo dia, procurávamos por uma obra a ser debatida. Lembrei dos comentários da Fernanda dizendo o quanto a parte que ela lera de “Os suicidas” era divertida e engraçada. Leve. Sugeri. Tolas.

“Pergunto-lhe se seria capaz de fotografar um tremor. […] Insisto: ‘O tremor em si mesmo, não os efeitos e conseqüências: nem pessoas que correm nem uma parede rachada nem a torre caída de uma igreja’”. Era o argumento do personagem para se pensar o significado dos olhos estáticos e abertos de um morto naquele último instante; diante da morte sentiu algo. O que? É possível captar, interpretar? Do mesmo jeito Benedetto ia me guiando pelas impossibilidades de uma leitura só. Além dos entendimentos. Comuns.

Vieram os conceitos de morte. A pesquisa do autor na voz dos personagens. Os fragmentos de textos. Reportagens. Explicações filosóficas. Estatísticas e manipulações. Casadas ficção e realidade. Interpretação. A linguagem pós-moderna tomava as páginas daquele livro do século passado. “Viver é bom, às vezes. […] Ele ficou, no retrato, para sempre, jovem. Nunca será velho. Ninguém poderá humilhá-lo. Se não se vive, não é preciso agüentar que nos deixem viver. Os demais nos deixam viver, mas determinam como”.

Eu tinha apenas uma noite para decifrar a escrita entrecortada e fascinante; para mim – novidade. O grupo literário já revelava, virtualmente, o desapontamento e a nota desfavorável. A pontuação da turma beirava de zero a menos da metade. Muito longe da nove; eu lhe daria. “Prescindo do café-da-manhã, tomo um café preto, na cozinha, onde permanece com seu vinho tinto o copo que servi à Mae West”. Deliro – “Nascemos com morte dentro de nós […] Os corpos já se encontram nas padiolas, mas estas permanecem no chão. Panos ásperos os cobrem. Quero ver o rosto.” – sob edredons que vestem a noite gelada do cerrado. É julho em Brasília.

“Acho que é um pacto. É um pressentimento meu”. A trama vai envolvendo desentendimentos familiares. Traição. Ciúme. Competição. Melancolia. “O meu irmão se suicidou aos 60 anos. Eu nunca havia me preocupado seriamente com isso, mas, quando cheguei aos 50, a lembrança adquiriu vivacidade para o meu espírito, e agora eu a tenho presente”.

A narrativa é atraentemente descompassada, feito peito em arritmia frente ao medo ou à excitação. Ela coloca em plano secundário os nomes dos personagens e o fio da investigação sobre a motivação dos suicidas; apresentados como cadáveres nas primeiras páginas do enredo. Não importa. O mote é outro. O foco, o que se pretende instigar, está do outro lado do miolo impresso pela editora Globo. O livro é a arma que o leitor aponta para si. Para os próprios miolos.

Interessante, além da polêmica que o livro gerou no debate literário sobre a sua qualidade, é o preconceito que o título evidencia. “Os suicidas”. Colado ao lado do nome de seu autor. Logo abaixo da mancha alaranjada que escorre do topo para ilustrar sua capa. Aquarela? Sangue? Quem enxerga o que? A escolha em ler a obra, tardiamente traduzida no Brasil, gerou suspeitas. Um amigo disse: ela (eu) deve estar muito desiludida, deprimida e melancólica para sugerir essa leitura. “Doze, doze suicidas já houve entre os nossos. Eram fantasias de glória, revanches de quem vinha de uma existência de humilhada adversidade? Ele sonhava isso ou eu sonhei que ele sonhava?”. Mal entendidos. Desentendidos.

“Senti um tremor e indaguei na minha alma se era medo e eu não soube me responder, mas descobri que também podia ser a irrupção de um vivo gozo. Nesse momento, me acometeu algo inesperado, uma espécie de forte ataque de vaidade: enrolei o papel…”. Tive a chance de saber mais da morte por outras mentes e viventes. Durkheim. Cleópatra. Hamlet. Kierkegaard. Kant. Camus. Platão. Pitágoras. Camus. Balmes. Buda. Confúcio. Voltaire. Hegel. Nietzsche. Schopenhauer. Hume. Napoleão. Em complemento às religiões. “A tarde flui lentamente para o ocaso”.

“De fato, a questão não é por que eu me matarei, mas por que não me matar”. Às 17 horas, quatro antes do encontro, fechei a última capa entre: entendidos, mal entendidos, desentendidos e tolos. “São 11 horas. Terei de avisar, o que será embaraçoso. Devo me vestir porque estou nu. Completamente nu. Assim se nasce”. Vesti uma calça preta, uma blusa azul. Passei batom. Cheguei atrasada no Café com Letras. Pedi um chopp. Entre seis, o debate começou. “O vento continua, faz uuh, enfia-se por entre os edifícios”. Eu sonho também que vou descalça para o trabalho. “Sobra-me noite”. Ela chega.

julho 31, 2010

enquete com 60 escritores

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O incerto caminho até a publicação

Em enquete com 60 escritores, levantamos os dilemas enfrentados por autores em busca de editoras

31 de julho de 2010 | 

Anos atrás, o editor Paulo Roberto Pires presenciou uma inflamada discussão acerca do excesso de autores estreantes que as grandes editoras andariam colocando no mercado. Ele sabia que, a qualquer momento, um dos críticos poderia apontá-lo entre os culpados pelo que seria “falta de parcimônia” editorial. Como jornalista cultural, depois um dos organizadores da primeira Flip (2003) e, por fim, editor em duas das maiores casas publicadoras do País, a Planeta e a Ediouro, ele apresentou a um público mais abrangente alguns dos principais nomes da Geração 00, como João Paulo Cuenca, Joca Reiners Terron e Santiago Nazarian.

JF/Diório

JF/Diório

Pires não considera isso negativo. “Se um escritor é bom ou ruim, o tempo é quem diz. Era preciso sacudir o mercado naquele momento em que era enorme a diferença entre o que se editava e o que se via de interessante na internet.” O fato é que atitudes como a dele ajudaram a estimular a aceitação a novos autores. “A internet alterou o perfil do lançamento de um estreante”, avalia Vivian Wyler, gerente editorial da Rocco. “Está mais fácil ser autor agora do que quando quem badalava sua obra era visto com desconfiança, como se não tivesse a pátina correta de eruditismo. Hoje, ninguém vai criticar quem quer estar onde os leitores estão. As feiras literárias estão aí para provar.”

A exposição só não alterou o fato de que a publicação por uma grande editora marca, em geral, o momento em que tudo muda na trajetória de quem quer viver de literatura – ou se tornar uma pessoa jurídica, como diz Cristovão Tezza, que pôde parar de dar aulas e viver apenas em razão de seus livros desde que O Filho Eterno, publicado pela Record, abocanhou quase todos os prêmios literários de 2008. “É importante a recepção que o livro tem quando vem de uma grande. As pessoas olham diferente para um livro da Companhia das Letras, por exemplo”, diz Antonio Prata, que ingressou nesse olimpo literário em 2003, com As Pernas da Tia Coralina, publicado pela Objetiva.

O Sabático resolveu saber dos próprios autores qual o impacto de uma grande editora em sua carreira, como foi o caminho até ela e como se sentem a respeito numa época em que, cada vez mais, surgem boas casas de pequeno ou médio porte no País – como a 34, a Iluminuras e a Ateliê Editorial, só para ficar em três exemplos. Numa espécie de pesquisa informal, enviamos pequenos questionários a quase 70 escritores de todas as idades, dos quais 60 aceitaram participar. As questões foram feitas em cima do primeiro título lançado com distribuição nacional e grande alcance de divulgação. E que, na maior parte dos casos, não foi o primeiro que tiveram editado – Lya Luft, por exemplo, escreveu o primeiro livro 13 anos antes de chegar à Record, onde virou best-seller com As Parceiras, em 1980; Ana Miranda escreveu dois de poesias por editoras pequenas e ficou 10 anos retrabalhando o mesmo romance até enviar os originais de Boca do Inferno para a Companhia das Letras – foram mais de 200 mil exemplares desde 1989.

É claro, o caminho é bem mais rápido para quem não se dedica a outros trabalhos antes, como Lya, ou não se debruça tanto tempo sobre a mesma obra, como Ana. As duas, que estrearam em grande editora com 40 e 37 anos, respectivamente, estão acima da média de idade que os participantes da enquete tinham quando chegaram lá, 34 anos. Quase um quarto dos escritores (23%) conseguiu fechar um contrato no mesmo ano em que terminou de escrever o primeiro livro – apostas em iniciantes, como no caso dos autores editados por Paulo Pires, ajudam a engrossar esse número; prêmios literários e publicações anteriores de contos em periódicos e antologias também.

Mas um número parecido (20%) esperou mais de uma década desde as primeiras tentativas literárias até receber um convite de uma grande editora. Caso de gente como Affonso Romano de Sant’Anna (que esperou 22 anos até, aos 38, ter Poesia sobre Poesia publicado pela Imago), Cristovão Tezza (17 anos tendo obras recusadas até Traposair pela Brasiliense) e Marcelo Mirisola (15 anos escrevendo livros até ser convidado pela Record a lançar Joana a Contragosto).

Mas Mirisola, assim como Marcelino Freire e outros escritores, já era conhecido quando teve o romance editado pela maior editora do País. O reconhecimento chegou com Fátima Fez os Pés para Mostrar na Choperia, que a Estação Editorial, uma editora de médio porte, publicou em 1998. “No meu caso, não mudou nada”, diz o paulistano sobre o título que saiu pela Record. Tanto que, depois disso, voltou para uma editora média, a 34, e em breve terá um infantil (a quatro mãos com Furio Lonza) pela Barcarolla.

Indicações

Só quatro dos 60 autores (Mirisola, Ana Miranda, João Almino e Tiago Melo Andrade) disseram que recomendações feitas por outros escritores ou pessoas próximas não facilitam o caminho para um iniciante. Tirando um ou outro que preferiu não emitir opinião a respeito, a grande maioria respondeu ao Sabático que a indicação abre portas, sim – mas todos ressalvaram que apenas permite aos manuscritos uma mãozinha para chegar logo ao topo da pilha de originais. Vinte e um dos autores disseram que escreveram a convite – está certo que boa parte deles já era algo conhecida por textos em antologias, periódicos ou editoras pequenas. Outros 38 afirmaram que enviaram originais; desses, 24 conheciam o editor ou tiveram a tal recomendação, e os 14 restantes afirmaram só ter oferecido os originais nas editoras. E uma única, dentre os 60, recorreu a um agente – Ana Maria Machado, publicada pela Francisco Alves, uma das grandes em 1983. “Nos EUA, é mais comum iniciantes contratarem agentes. Por aqui é raro o autor se arriscar a pagar um agente sem a certeza da publicação; isso só costuma acontecer quando eles já estão com carreira mais estabelecida”, diz a editora Izabel Aleixo.

Por curiosidade, metade dos 38 autores que foram bem-sucedidos após enviar originais preferiram fazê-lo para uma só editora – uma espécie de ética que as casas publicadoras não exigem e que pode acabar sendo um problema para quem aspira ser editado. Luciana Villas Boas, diretora editorial da Record, por exemplo, diz que não vê mais originais em papel não solicitados. “Não há como. Se vem um e-mail, a gente até se situa. Se achar que a carta está bem feita e que existe um mínimo de potencial, vai para leitura. Recebo uns 25 emails por mês, sem falar nos que recebem todos os outros editores, e uma quantidade absurda de papel que não serve para nada.”

Vivian Wyler, gerente editorial da Rocco, diz que passam de 150 os originais que chegam por mês à editora. A Rocco não veta os que chegam em papel, mas exige que todos venham gravados em CD – se o autor quiser mandar a impressão em anexo, fica por conta dele. “E, vou te dizer uma coisa, 98% dos livros. logo nas primeiras páginas, senão na carta de apresentação, você vê que não é um livro de verdade. Não falo nem de regras gramaticais, e sim de um mínimo de estilo, de consciência literária”, diz Izabel Aleixo, ex-diretora editorial da Nova Fronteira, que acaba de assumir cargo na Paz e Terra. Isso faz com que bons livros se percam na montanha de aspirações literárias. E é aí que entra a recomendação. Não porque vá privilegiar alguém, mas porque permite a triagem.

Mas nem todos são adeptos da fidelidade. Elvira Vigna, ao terminar O Assassinato de Bebê Martê, abriu um catálogo do Snel (sindicato dos editores) e mandou uma cópia do romance a cada editora cujos nome reconheceu. Em menos de um mês, recebeu a resposta de uma das melhores do País, a Companhia das Letras. Nelson de Oliveira também mandou seus contos de estreia para cerca de 20 editoras, mas precisou esperar oito anos, ganhar um prêmio, o Casa de Las Americas, e ser recomendado por um dos jurados, Rubem Fonseca, para publicar pela mesma casa Naquela Época Tínhamos um Gato>. Hoje, voltou a publicar por pequenas editoras: “Não há mais muita diferença. Em geral, as pequenas se profissionalizaram.” Ignácio de Loyola Brandão, que mandou cópias de seu Depois do Sol para 13 editoras, recebeu cartas padrões de quase todas e uma que não esqueceu, da Civilização Brasileira: “O autor escreve como quem mija.” “Achei até que era elogio, mijar é um ato natural”, conta. Acabou sendo publicado logo pela Brasiliense – e o editor Caio Graco, lembra Ignácio, aceitou a obra sem nem fazer reparos de edição.

Autores falam sobre o primeiro livro

“Já na Ateliê (de médio porte), com o Angu de Sangue, em 2000, minha vida literária mudou. Fui bastante resenhado, divulgado. Não sou desses que ficam com a bunda na cadeira, reclamando de editor”

Marcelino Freire

“As pessoas olham diferente para um livro da Companhia das Letras, por exemplo. Se fica mais fácil? Creio que sim. Mas não acho que no Brasil publicar seja problema. Isso é fácil. Difícil é vender”

Antonio Prata

“Aprendi que as pessoas não querem palpite nem sugestões, querem endosso e apadrinhamento. Qualquer restrição ou dica, por mínima que seja, é vista como ofensa e se ganha um desafeto”

Ana Maria Machado

“A passagem da Revan (de pequeno porte) para a Nova Fronteira não significou nada. Meu desempenho de público até piorou. Tanto que a Nova Fronteira não quis um segundo livro meu”

Alberto Mussa

“Aquele era o meu livro, era o livro possível, e se o editor fosse mais invasivo a obra não seria tão autêntica. Prefiro caminhar com as minhas próprias pernas e aprender com os meus próprios erros”

Adriana Lisboa

“A gente também passa a fazer outros trabalhos: textos de prosa e ficção para jornais, orelhas de livros, palestras. Para isso, é imprescindível ser publicado por uma grande editora, é evidente”

Cintia Moscovich

“Editoras grandes ajudam sobretudo em distribuição e divulgação, mas é precipitado dizer que necessariamente trazem mais público. Nada impede que isso seja alcançado em publicação independente”

Daniel Galera

“Quem leu (o primeiro livro que escrevi) achou péssimo e tive de concordar antes de enviar a qualquer editora. Mas todo livro é o primeiro. Já tive livros recusados depois de publicar o primeiro”

Bernardo Carvalho

“(A indicação) facilita o acesso à editora, mas não garante a publicação. É lenda achar que, por conhecer o autor ou ser amigo de alguém de seu círculo, o editor vai publicar o livro”

Cristovão Tezza

abril 4, 2010

João Cabral de Melo Neto – in: Revista da Cultura

Filed under: Aqui o mal geral,Outros Escritos — maldemontano @ 3:38 am

Um dos grandes nomes da poesia brasileira do século 20, João Cabral de Melo Neto nasceu no Recife, no dia 9 de janeiro de 1920. Seus primeiros dez anos de vida foram praticamente passados no engenho da família, em São Lourenço da Mata (PE). A infância à beira do Capibaribe o marcaria para sempre. Os trabalhadores da fazenda de seu pai lhe traziam folhetos de literatura de cordel, assim teve seu primeiro contato com a literatura. Sem saber ler, esses homens o escalavam para sessões de leitura nos momentos em que não estavam trabalhando nos canaviais.

Na juventude, já em Recife, ao ler Manuel Bandeira e Mario de Andrade pela primeira vez, ficou aliviado com a possibilidade de ser poeta sem escrever como Olavo Bilac. Até então, tinha horror à poesia por só ter tido acesso aos poetas parnasianos. “Aquilo me dava nojo”, diria mais tarde.

Mudou-se para o Rio de Janeiro com pouco mais de 20 anos. Aproximou-se do primo Manuel Bandeira, 34 anos mais velho, e também ficou amigo de Carlos Drummond de Andrade, a quem pediu para ser apresentado e apontaria depois como seu grande mestre na literatura brasileira.

O escritor e crítico literário, membro da Academia Brasileira de Letras, Antonio Carlos Secchin, que melhor analisou a obra de João Cabral, segundo o próprio poeta, avalia que Cabral é “o último grande clássico de nossa poesia, na sequência de Bandeira e Drummond”.

Para ter tempo e estabilidade financeira para ler e escrever, João Cabral escolheu a carreira diplomática. Em 1944, prestou exame para o Itamaraty e foi nomeado diplomata em dezembro de 1945 – profissão que seguiu por mais de 40 anos e lhe proporcionou grandes oportunidades culturais. Morou em vários países. A Espanha foi o primeiro deles e também a primeira viagem internacional do poeta, aos 27 anos. Viveu ainda na França, em Portugal, na Suíça, no Senegal e em Honduras. As viagens e as mudanças constantes eram uma obrigação profissional e o deixavam tenso, pois tinha medo de avião!

No documentário Recife/Sevilha – João Cabral de Melo Neto, dirigido por Bebeto Abrantes, sua filha, a cineasta Inez Cabral, conta que ele temia morrer em um desastre aéreo e por isso preferia fazer as viagens sozinho. A família sempre ia depois. João Cabral também não gostava de se envolver com a parte prática das mudanças, deixava essa tarefa para a esposa, que tratava de organizar tudo enquanto ele esperava no hotel.

Nenhum país o marcou tanto quanto a Espanha. O homem e as manifestações culturais do país o fascinavam, mais precisamente a cidade de Sevilha, onde foi cônsul-geral entre 1962-1964. As touradas também despertavam o seu interesse. Em certa ocasião, o poeta Ferreira Gullar o acompanhou para conhecê-las. “Eu achei aquilo de um sadismo imenso, mas ele gostava”, revela Gullar. “Para ele, era a vitória da razão contra a animalidade”, completa.

Na casa de João Cabral, em Barcelona, Gullar perguntou o porquê de tantos quadros concretistas na sala. Cabral respondeu que precisava de alguma coisa que tivesse ordem, já que a sua cabeça era uma grande confusão. “Ele não era formalista porque queria. O que ele tinha era uma necessidade de ordem. Queria se livrar da sua instabilidade emocional através de coisas concretas. Por isso mesmo, para entender João Cabral, é preciso entender como ele era, e não julgá-lo pelas coisas que se diziam a seu respeito”, conclui.

Engenheiro da Palavra
João Cabral tinha como diferencial a construção de sua poesia. Achava que ela precisava ser feita arquitetonicamente, tal como a flor: não precisava ser perfumada ou cheia de sentimentalismo derramado. Conhecido como o Engenheiro das Palavras, era contra a espontaneidade. “Da primeira palavra à última, todas elas têm que ter um sentido, de forma que a primeira é tão difícil quanto a última”, explica o próprio poeta em cena do documentário Recife/Sevilha.

O jornalista e biógrafo José Castello esteve com João Cabral em 21 longos encontros para escrever o livro João Cabral de Melo Neto – O homem sem alma. Ele explica que o poeta criou um mito em torno de si. “O homem sem alma (alma como mundo interior, e não no sentido religioso), seco, contido e cerebral, era apenas uma casca, uma armadura. Bela armadura, aliás, que lhe rendeu poemas extraordinários. Mas, dentro de João e seus poemas, os sentimentos, os conflitos e a desordem ferviam”, explica o autor.

Castello conviveu com Cabral de 7 de março de 1991 a 6 de abril de 1992, quando o poeta, já tendo encerrado sua carreira diplomática, vivia em um apartamento na praia do Flamengo, no Rio. Nessa fase, João Cabral estava com a saúde frágil e sofria de uma depressão a qual preferia chamar de melancolia. “Quase não saía mais de casa e, por causa dos problemas de visão, não via mais futebol na TV, o que adorava fazer. Não suportava mais ler literatura, porque se emocionava demais. Tentava ler ensaios de geografia ou de história, mas até eles o perturbavam. Estava com a sensibilidade à flor da pele”, conta.

A solidão e o vazio eram enfrentados na companhia das pessoas que o visitavam. João Cabral não acreditava em psicanálise, pelas más lembranças de um período de seis meses que passou internado em um sanatório, na juventude, por sugestão de um primo médico, para tentar se livrar das constantes dores de cabeça que sentia. Segundo dizia, elas começaram quando, aos 16 anos, foi rejeitado para um trabalho como jornalista.

Durante 50 anos, essas crises constantes de enxaqueca o acompanhariam e a aspirina seria a sua grande compulsão. A dor só desapareceu em 1986, quando foi submetido a uma cirurgia de emergência por problemas no estômago e cortaram-lhe o nervo simpático.

Já a melancolia o acompanhou até o fim da vida. Teria começado quando, em 1952, foi acusado de subversão por Carlos Lacerda [governador do Rio], por ter escrito ensaio sobre o escultor e pintor espanhol Joan Miró. “Talvez por ter sido visto como alguém que eu não sou”, disse Cabral a José Castello.

Seus últimos anos foram de grande vazio por conta de uma doença degenerativa que o fez perder a visão. Considerava a cegueira castigo, ela o privava das duas coisas que mais gostava de fazer: ler e escrever. João Cabral de Melo Neto morreu no dia 9 de outubro de 1999, aos 79 anos, no apartamento em que morava, na praia do Flamengo, na zona sul do Rio.

A obra
O autor de Pedra do sono (1942), Os três mal-amados (1943), O engenheiro (1945) e Psicologia da composição (1947) ficou impressionado ao ler uma reportagem informando que a expectativa de vida na Índia era de 29 anos e no Recife, 28. Escreveu, então, O cão sem plumas, publicado em 1950. A partir daí, dizia, Pernambuco não o largou mais. Sua obra completa foi reunida e publicada em 1994.

Cabral considerava o clássico Morte e vida severina, de 1956, uma obra menor, que não chegava a ser poesia. Era “apenas” um monólogo- diálogo, apesar de ser sua obra mais popular. Segundo Antonio Carlos Secchin, “ele propositalmente desvalorizava Morte e vida severina, talvez para chamar a atenção para outros títulos de sua obra. Um poeta de sua estatura não pode mesmo se ver reduzido a um só livro, ainda que seja magistral e de merecido sucesso, como esse título inesquecível”. ©

Filed under: Mal do dia,outros males — maldemontano @ 3:14 am

10/12/2008 – 08h20

Morto há cinco anos, Roberto Bolaño vira best-seller nos EUA

SYLVIA COLOMBO

da Folha de S.Paulo

“Os Estados Unidos vivem hoje duas manias. A Obama-mania e a Bolaño-mania.” A frase é de ninguém menos que Andrew Wylie, um dos mais importantes agentes literários do mundo.

O representante de autores como Philip Roth, Saul Bellow e Norman Mailer declarou à Folha que, em 30 anos de atuação no mercado editorial, jamais havia observado um fenômeno de vendas como o que está sendo alcançado pelo chileno Roberto Bolaño (1953-2003).

Nos EUA, atualmente, menos de 4% dos livros de ficção são traduzidos de outras línguas. Neste cenário, um estrangeiro que atinge a marca de mais de 75 mil cópias vendidas com um só título (“2666”) é um verdadeiro recorde.

Em novembro, a revista britânica “The Economist” dedicou ao fenômeno uma matéria com o título de “Bolaño-mania”, enquanto o “New York Times” acaba de festejar o mesmo livro colocando-o em sua lista dos dez melhores de 2008.

O legado de Bolaño passou recentemente, a pedido de sua viúva, às mãos do escritório de Wylie. Na última Feira de Frankfurt, em outubro, o agente apresentou um livro inédito, “The Third Reich” (o terceiro reich), e anunciou o começo dos trabalhos de edição de outros escritos do chileno que ainda não vieram à luz.

“Quem me apresentou a seu trabalho foi Susan Sontag, que era uma grande fã. Ao lê-lo, fui percebendo que possuía uma voz muito diferenciada do que se encontra na literatura contemporânea. Tem um olhar que viaja do naturalismo para uma paisagem de sonho, alucinatória. Ele era uma espécie de Rimbaud”, avalia o agente.

Lorin Stein, da Farrar, Straus & Giroux, atual responsável pela publicação de seus livros no país, diz que trata-se do “único novo autor em quem podemos realmente acreditar. Sua atitude diante da ficção, da posteridade, do significado da criação artística, é realista de um modo que não vemos em nenhum outro escritor nos dias de hoje”, disse, em entrevista por e-mail.

E acrescenta, sobre a sensação que teve ao deparar-se pela primeira vez com seu universo: “Se um gigante como esse estivesse diante de nossos olhos e não conseguíssemos enxergá-lo, nós, das grandes editoras, teríamos de reconhecer que temos muito o que melhorar”.

O sucesso deste homem de trajetória trágica, que morreu prematuramente aos 50 anos, de uma doença de fígado, está longe de ser novidade abaixo da linha do Equador.

Porém, enquanto no restante da América Latina seu talento é reconhecido pela crítica e tornou-se referência para toda uma nova geração, no Brasil seu prestígio ainda é relativamente pequeno.

Já lançados aqui, “Detetives Selvagens” (considerado seu principal livro), “Noturno do Chile”, “Pista de Gelo” e “Putas Assassinas”, venderam, cada um, uma média de 3.000 exemplares, o que é bom para os padrões locais, mas não chega a ser um êxito considerável.

A Companhia das Letras lança agora “Amuleto” e, em 2010, entregará às prateleiras o já mencionado “2666”.

Juventude trotskista

Bolaño cresceu no México e voltou ao Chile natal no começo dos anos 70, entusiasmado com o governo do presidente socialista Salvador Allende. Derrubado o regime, em 1973, o jovem trotskista foi perseguido e passou alguns dias na prisão. Depois, partiu para a Espanha e, na Costa Brava catalã, acabou fincando raízes.

Seus livros tratam de modo original o gênero policial, mas também falam de política e drogas, além de refletir sobre a própria literatura, tendo usualmente escritores –e a si mesmo– como personagens.

Há colagens de histórias aparentemente independentes e personagens que transitam entre uma e outra. Seu estilo leva críticos mais apaixonados a compará-lo a Julio Cortázar.

Para o argentino Alan Pauls (“O Passado”), a originalidade de Bolaño está no cruzamento eficaz de “tradições que nunca tiveram muita simpatia uma pela outra: a aventureira e espontânea beatnik com a erudita e sofisticada ficção mais “letrada”.” E resume: “É como se misturássemos Jack Kerouac com Jorge Luis Borges”.

Já Stein faz outra comparação. Pelo fato de ter se tornado uma moda rápida, por criar histórias que mesclam thriller e questões existenciais, e por atingir um grande público com livros imensos, ela designa o chileno como “uma espécie de Harry Potter intelectual”.

Entrevista – Maria Alzira Brum Lemos

Filed under: Aqui o mal geral,Entrevistas — maldemontano @ 2:52 am

Conversas no Sótão com Maria Alzira Brum Lemos

Foto de Eder Chiodetto

Minha entrevistada da vez é a escritora Maria Alzira Brum Lemos, que estará lançando no próximo dia 16 o livro: A ORDEM SECRETA DOS ORNITORRINCOS, pela Amauta Editorial. E Assim se deu a nossa conversa:
1. Qual é o seu “lugar imaginário” favorito dentro da literatura?
R.
Dentro da literatura, nenhum. Qualquer lugar determinado e fechado, “real” ou “imaginário”, me mataria de tédio. Prefiro os trânsitos, as passagens, os buracos de minhoca entre que chamamos de realidade e ficção, viver várias dimensões e personagens, explorá-los, piratear histórias, co-construí-las.
2. Se você entrasse no labirinto de Creta e deparasse com o Minotauro, o que você faria ou diria para ele?
R.
Bem devagar, por favor.
3. Se você pudesse escolher ser um personagem da história da literatura, qual seria?
R.
Um mutante do Mario Bellatin. Assim poderia viver vários personagens, incluindo o de autor. Um cientista viajante do século XIX que se transforma em Mata Hari, depois num duplo do Jorge Luís Borges e numa santa que, num êxtase místico, encontra um cientista viajante do século XIX…

4. Qual é a importância da imaginação, da memória e da observação em seu processo criativo?
R.
Observação, memória e imaginação são partes interagentes do processo criativo. Não há uma coisa sem a outra, tudo está conectado e se retroalimenta. O que faço-fazemos é pensamento, conhecimento, descoberta, design de relações, modo de vida. Não penso em termos de gênero de escritura ou disciplinas. A vida é um processo criativo, me interessa explorar suas dimensões, e os textos são parte desta exploração.
5. Qual foi o autor ou livro que, na sua infância ou adolescência, te fez gostar de ler, ter o prazer da leitura?
R.
Meu prazer pela leitura não vem da narrativa, da literatura ou de algum autor em especial, e sim do fascínio pela palavra escrita. Quando eu tinha uns 4, 5 anos, minha mãe encerava a casa e espalhava jornais pelo chão. Eu ficava horas olhando maravilhada para as letras e imagens. Pedi à minha mãe que me ensinasse a ler. Ela me ensinou, e logo comecei a ler notícias, anúncios, horóscopos, quadrinhos, rótulos de embalagens, créditos dos programas de televisão. Depois vieram as revistas e as enciclopédias em fascículos. Meus pais me incentivavam. Um dia o meu pai trouxe um catálogo do Círculo do Livro. Eu me lembro desta leitura como uma experiência incrível em si mesma. Não sei por que, escolhi O retrato de Dorian Gray, que acabou sendo a primeira obra de literatura que eu li. Eu tinha uns 9 anos. Na adolescência, descobri Cortázar e me apaixonei. Literalmente. Eu me sentia percorrendo com ele as ruas de Paris. Era toda uma experiência. Não ter tido uma educação literária tradicional me ajudou. Minha curiosidade não foi dirigida, pude contar com o acaso, com a intuição. As leituras são parte da minha vida. Li e leio história, filosofia, ciência, religião, política, economia, textos pupulares, poesia. Minha “formação como leitora de literatura” é atípica e anárquica, e agradeço por isto.
6. Se você tivesse uma máquina do tempo, que escritor(a) ou poeta do passado você desejaria encontrar?
R.
Eu tenho uma máquina do tempo! Posso encontrar qualquer escritor ou poeta do passado. Já no caso dos contemporâneos, usamos outras estratégias, por exemplo, trazê-los para a Balada Literária, as atividades do Instituto Cervantes, o Escrituras Invisíveis…

Contatos:
E-mail: malzira.brum@gmail.com

POSTADO POR MARCELO MALUF 

Entrevista com Enrique Vila-Mata

Filed under: Aqui o mal geral,Entrevistas — maldemontano @ 12:11 am

Enrique Vila-Matas é um dos mais proeminentes escritores da atual literatura hispânica, nasceu em Barcelona em 1948 e já lançou 28 títulos em mais de 20 países. Seis de seus livros foram traduzidos para o Brasil: A viagem verticalBartleby e companhiaO mal de MontanoParis não tem fimSuicídios exemplares e acaba de sair do prelo Doutor Pasavento. Consagrado em 2006 com o prêmio da Real Academia Espanhola, uma de suas características é misturar sem medo ensaio e ficção, isso levou o crítico José Castello a dizer que sua obra “exige o aparecimento de um novo tipo de leitor, nem passivo nem ativo, mas desarmado e disposto a se deixar perturbar pelo que lê”, e a jornalista Bia Abramo a assinalar: “É um escritor singular, tão singular quanto os personagens que habitam seus livros”. Ao retratar, em três novelas, algumas das patologias que abalam grandes escritores, criou uma espécie informal de trilogia nomeada Catedral metaliterária, usando a literatura como marco de reflexão e ponto de fuga. Por essas e outras, a narrativa de Vila-Matas é leitura instigante e intrigante. A seguir, o autor com a palavra, numa pequena entrevista feita por e-mail e, surpreendentemente, respondida quase no mesmo instante.

Qual o papel da literatura no mundo de hoje?
Non olet (não cheira), foi a expressão que utilizou o imperador romano Vespasiano em relação ao dinheiro, em resposta a seu filho Tito Lívio quando este o recriminava quanto à cobrança de impostos pelo uso dos mictórios públicos. Hoje em dia, quando tudo gira em torno do dinheiro, é impossível que o pensamento e a arte literária ocupem lugar central. O máximo que temos é uma “cultura do ócio”. Nessas complicadas circunstâncias, os verdadeiros escritores fazem o que podem.

Pode-se dizer que um dos temas centrais de Doutor Pasavento é a necessidade
Aparentemente, o livro gira em torno do tema do desaparecimento. Um escritor consagrado deseja deixar de ser visto (quer se ocultar, à maneira de Salinger), decide que não quer escrever para logo ter de ser entrevistado e fotografado. Ao tentar desaparecer, descobre que ninguém se preocupa que tenha sumido. Isso o faz sentir-se ainda mais só do que acreditava estar.

A experiência literária existe sem a experiência de vida?
Vida e literatura seguem unidas em franca camaradagem. Nesse mundo, não há nada que não esteja ligado.

Como surgiu a ideia para sua Catedral metaliterária? O que existe por trás disso?
Sem que eu tenha planejado previamente, Bartleby e companhiaO mal de MontanoDoutor Pasavento pertencem a um mesmo impulso criativo. Analisam três patologias dos escritores. O silêncio (Bartleby), a literatura como droga (Montano) e a necessidade de não ser visto, de escrever na sombra (Pasavento).

Ensaio e ficção se misturam em Doutor Pasavento. Qual a importância e o objetivo disso?
A forma literária que emprego une ficção e ensaio sem permitir que se note o salto de um gênero ao outro. Na minha cabeça, não existem compartimentos fixos, não coloco fronteiras entre os gêneros. Pensamento e ficção caminham juntos.

“Pensar que somos o que cremos ser”, no dizer de Pasavento, é uma viagem transformadora ou uma armadilha nefasta?
Eu sou outro. Se isso fosse verdade, seria um consolo. “Não sou desenraizado: simplesmente não tenho raízes”, diz. Qualquer simulacro de enraizamento que não seja metafísico, metabiológico ou metatemporal, o rechaço, o vômito… A única verdade que me ilumina, que me dá esperança é o “eu sou outro”.

Quais são os escritores e as obras fundamentais em sua vida?
Digamos que, no século passado, não havia nada superior à profunda e profética obra de Kafka.

O que você está lendo agora?
William Gaddis, Flann O’Brien, Roberto Bolaño, Maria Alzira Brum Lemos.

Em que trabalha neste momento?
Publico na França e na Espanha minha nova novela Dublinesca e o breve ensaio narrativo Perder teorias. E estou escrevendo meu novo livroDoctor Finnegans y monsieur Hire

abril 3, 2010

poesia é trabalho…

Filed under: Aqui o mal geral,Mal do dia,Poesias — maldemontano @ 6:08 pm

Poesia é trabalho

Manoel de Barros não se cansa quando fala de sua paixão pela palavra

Por Caco de Paula – Revista Vida Simples – 06/2008

Há quase 30 anos, quando li pela primeira vez Manoel de Barros, ele já não cabia na definição de “poeta do Pantanal”. É poeta e ponto. Um dos maiores do Brasil. Confunde-se às vezes com a grande planície por onde a água flui e transforma a paisagem, feito as palavras escorrendo por sua poesia, como nos versos em que as garças pantaneiras “enchem de entardecer os campos e os homens”. Manoel é quase sinônimo do Pantanal, pois, grande poeta, é quem mais bem sabe cantar a terra – a água, o lodo e o cisco – em que vive.

Embora o Pantanal seja ambiência freqüente de sua poesia, seu tema central é o nada, o desimportante, os trastes esquecidos e jogados fora. “Todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para a poesia.” Não se pode passar régua no Pantanal, ou no poeta. Penso nisso, agora, chegando a Campo Grande, para novo encontro com Manoel, quase 20 anos depois da primeira vez que nos vimos. Falo com ele na véspera de viajar a uma paradisíaca reserva de proteção da natureza no Pantanal, mantida pelo Sesc, em Porto Cercado, onde borboletas se passam por folhas e aves se fazem de galhos.

O próprio Manoel me recebe quando chego à sua casa. Aos 91 anos, continua com olhos brilhantes de moleque curioso que se encanta ao contar histórias. Discreto, um caramujo, Manoel tem andado ainda mais recluso. “Desde que João, filho mais novo, morreu no ano passado, não vou mais à fazenda.” Não ouve direito de um ouvido e não quer usar aparelho. Pede que o interlocutor fique à sua direita. Acolhedora, Stella, sua mulher, se despede para ir ao dentista. Pedro, filho mais velho, vez em quando espia na sala. Cuida para que o pai não se canse.

Manoel não se cansa quando fala de sua paixão pela palavra ou do sentimento de pureza infantil que inaugurou seu amor à poesia. Conta-me dos andarilhos com quem conversava na infância e de como influenciaram sua linguagem. Diz que conselhos não servem a artistas, que precisam é ter dom. Lembra a importância de educar os sentidos, ler, ver arte, ouvir música, encantar-se pelas coisas.

Não acredita em inspiração, mas sim em vontade. “Poesia é trabalho, em cima de harmonia, ritmo, rima. Sou prático pela palavra. Se me vem um desejo de fazer um poema e, depois de algumas linhas, me falta uma palavra, é à noite que ela me vem. Aí, acordo e anoto num caderninho. Stella, minha mulher, fica incomodada. Já veio a palavra, Manoel? Então dorme. Poesia é assim. O poeta é um visionário.” Conta-me que não relê sua poesia, que tem tédio dela, por já ter sangrado e sofrido a cada verso. Que agora não está escrevendo, pois se sente oco. Que sua poesia é perseguida pela natureza e pelas percepções infantis. Que ainda quando criança aprendeu a distinguir o canto do gorjeio. Manoel me diz, principalmente, que a poesia é para ele uma espécie de encantamento – e que, se sua arte de fazer versos for uma espécie de loucura, não quer ser curado dela não.

Caco de Paula não sabe direito a diferença entre canto e gorjeio, mas espera aprender relendo Compêndio para Uso dos Pássaros e outros livros de Manoel. homemdebem@abril.com.br

Geração Beat – Como esquecer…

Filed under: Mal do dia,Outros Escritos — maldemontano @ 3:46 pm

por Lendo.org

Para mim, falar de livros, além de ser sempre um prazer, me remete à cultura, ao tempo e espaço onde o escritor se inspirou para escrever seu livro. Eles são eternos, porém datados política e socialmente. Quando um escritor tem sua inspiração para desenvolver sua obra, ele está cercado pelo espaço e pelo tempo e, assim, não tem como não catalogarem seu livro, questões sociais, comportamentais e filosóficas. Respeito, mais que tudo nesta vida, aquele que emprega seu tempo e seu coração no ato de escrever. São deuses os escribas e devem ser sim reverenciados como disse-o bem nosso querido amigoChristian Gurtner.

Hoje vou falar de Jack Kerouac, para mim um dos maiores e mais sensíveis escritores de seu tempo. Vou falar de revolução cultural. Revolução! Uma revolução cultural que ficou conhecida como a Geração Beat.

On The Road - Jack KerouacOn The RoadCompare preços e economize dinheiro

Em 1957, Jack Kerouac publicava On The Road e iniciava uma revolução cultural nos Estados Unidos. Este livro tornou-se o manifesto da geração beat, que rompia com o compromisso doamerican Way of life e pregava a busca de experiências autênticas, um compromisso selvagem e espontâneo com a vida até seus mais perigosos limites. Diante de uma sociedade que aniquilava o indivíduo, os beatniks queriam uma consciência nova, libertada de padrões, escolhiam a marginalidade. (Trecho O Autor e sua Obra)

Não queriam continuar numa sociedade morna, desprovida de vida, de ação e liberdade de pensar e viver.

Apesar das experiências com o êxtase através das drogas, na minha opinião é apenas um detalhe dada a importância desta revolução, a geração beat marcou nova era no mundo cultural. O homem tem direitos de indivíduo e o mais sagrado é, possivelmente o de mudar o Status Quo. Perceber que pode repensar as coisas e, diga-se de passagem, estamos falando de uma revolução artística – Literatura essencialmente…

Os Beatniks

Por intermédio de Burroughs, Kerouac tomou contato com escritores como Kafka, Céline, Spengler e Wilhelm Reich. Os três amigos passaram a conviver com as barras pesadas do Times Square.

Descendente de uma família de franco-canadenses,Jack Kerouac recebeu uma educação católica e graças às suas aptidões de atleta foi estudar na Universidade de Colúmbia. Lá no Campus, conheceu Allen Ginsberg, também estudante eWilliam Burroughs, formado em Harvard. Os três iriam se tornar os principais representantes da geração beat.

Em 1947 Kerouac resolveu sair viajando pelo mundo e pegou a estrada. Associou-se com vagabundos, caroneiros, e bebeu muito por aí. Terminou o On The Road em 1951. Seu estilo é notável e inconfundível, com suas longas frases, onde descartava o uso da pontuação.

Mas sempre foi um individualista. Terminou dividindo um apartamento com sua mãe, onde pintava quadros com Cristos tristes, ficava horas a fio diante da televisão. Ou seja, era, no fundo um espírito conservador e não entendia como influenciara pessoas como Allen Ginsberg (poeta)!

Considerado um rebelde existencial, quedou-se ao budismo mas foi sempre um inadaptado ao mundo em que vivemos.

Escreveu vários romances, como “O Subterrâneo”, Desolate Angels”, “The town and the city”, entre outros.

Se alguém estiver se perguntando o que a geração beatnik tem a ver com os dias de hoje, eu poderia responder, de pronto, que tudo que somos e fomos depois desta revolução, tem a ver com a abertura literária no campo das experiências, da pós modernidade, da noção de liberdade de pensamento e principalmente, tem a ver com a felicidade de fazermos parte de uma cadeia de pensadores e escritores que nos deixaram um legado inestimável.

Trechos de On The Road

Casualmente, uma gostosíssima garota do Colorado bateu aquele shake pra mim; ela era toda sorrisos também; eu me senti gratificado, aquilo me refez dos excessos da noite passada. Disse a mim mesmo: Uau! Denver deve ser ótima. Retornei à estrada calorenta e zarpei num carro novo em folha, dirigido por um jovem executivo de Denver, um cara de uns trinta e cinco anos. Ele ia a cento e vinte por hora. Eu formigava inteiro; contava os minutos e subtraía os quilômetros. Bem em frente, por trás dos trigais esvoaçantes, que reluziam sob as neves distantes do Estes, eu finalmente veria Denver. Imaginei-me num bar qualquer da cidade, naquela noite, com a turma inteira; aos olhos deles, eu pareceria misterioso e maltrapilho, como um profeta que cruzasse a terra inteira para trazer a palavra enigmática, e a única palavra que eu teria a dizer era: “Uau!”…

maio 16, 2009

O homem que foi um século

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ENSAIOS

29/5/2006

Hugo Estenssoro

Um escritor “engajado” é um escritor que, descrente do valor perene da sua arte ou seu talento (e por convicção, por moda, ou simples decisão comercial) escolhe apoiar-se numa ideologia que acredita ser a corrente vitoriosa da História. O caráter dúbio da literatura engajada, que no mínimo é uma fraqueza ou traição estética ao submeter-se de maneira decisiva a critérios extra-literários, fica em evidência quando se trata de um escritor de gênio.

O caso clássico é o de André Malraux. A condição humana (1933) ainda é lida com fervor por jovens catecúmenos revolucionários que costumam ignorar que o romance é uma fantasia política sem relação alguma com a realidade chinesa da época ou as verdadeiras lutas revolucionárias do período. Ninguém menos do que Trotski o assinalou com sua costumeira brutalidade. Malraux respondeu, com rara honestidade numa vida de mentiras, que ele era um romancista e não um historiador.

Daí que um dos maiores paradoxos da história moderna, da era das revoluções, seja o fato irrefutável de que a grande literatura política é quase toda reacionária. Engels, famosamente, preferia o monarquista e carola Balzac ao subversivo Stendhal ou o progressista Victor Hugo, e Luckacs, o crítico marxista, achava o liberal Thomas Mann superior ao irmão esquerdista Heinrich. Mais ainda, com a perspectiva do tempo e o declínio dos aparelhos propagandísticos, fica cada vez mais claro que os clássicos da literatura política do “século das ideologias” são quase sem exceção contra-revolucionários: Orwell e Huxley, Pasternak e Vasily Grossman, Valle-Inclán e Pío Baroja, e muitos etcéteras.

Ninguém os promove (como os obrigatórios engajados nos currículos escolares e universitários), são os que vão ficando, filtrados pela insubornável preferência do leitor anônimo. As razões são óbvias mas não simples, e um exemplo pode ser mais claro do que uma explicação.

Nas cenas finais d’A condição humana, o herói enfrenta a morte pensando que “havia lutado por aquilo que nos seus tempos estava carregado com o mais profundo sentido e a maior esperança”, portanto “é fácil morrer quando não se morre só”.

Já em O zero e o infinito (1941), de Arthur Koestler, o herói do romance “não via senão um deserto e a escuridão da noite”, pois o “sentimento oceânico” do enfrentamento com a morte tinha lhe revelado a própria individualidade, que havia perdido no processo revolucionário. Na sua autobiografia, Koestler explica: “Na equação social, o valor de uma vida é zero; na equação côsmica é infinito”.

Ora, Malraux é melhor escritor que Koestler, mas nunca esteve em Xangai nem foi condenado a morte; fala bem, mas literalmente não sabia do que estava a falar. Koestler, pelo contrário, sentiu ele mesmo um “sentimento oceânico” e recuperou sua individualidade eterna enquanto esperava a morte, dia a dia durante meses, num cárcere franquista. Mas o romance de Koestler não é meramente mais “realista”, o que em literatura não tem importância. O livro de Koestler é superior porque é mais honesto e porque sua probidade se encarna no rigor estético. Lemos Malraux por prazer, mas lemos Koestler para saber quem somos.

É difícil acreditar que Koestler escreveu O zero e o infinito com apenas 35 anos, porque ao contrário do romance de Malraux, sintoma de um momento cultural europeu, o de Koestler é emblemático das grandes convulsões históricas do século 20. Todavia, a explicação é evidente: a vida vertiginosa de Arthur Koestler entre o ano de seu nascimento, 1905, e o período em que escreveu seu romance, 1938-1940, coincide com a voragem homicida que culmina com a Segunda Guerra Mundial.

Alguém já comparou a trajetória biográfica de Koestler com as frenéticas correrias dos primeiros filmes cômicos: a douceur de vivre do império austro-húngaro (na versão bucólica húngara e na versão cosmopolita vienense), o anti-semitismo e a Grande Guerra, a queda do império e a euforia do episódio comunista de Béla Kun em Budapeste, o ativismo sionista pan-europeu e uma prematura emigração à Palestina, o estudo apaixonado das ciências e a aventura do jornalismo, a vida de janota na República de Weimar, a opção pelo comunismo e um non-sequitur como espião, a peregrinação à União Soviética, a profissionalização como agente comunista internacional, a exaltada campanha anti-fascista, as misérias do refugiado político, a premonição dos Processos de Moscou, a experiência épica da Guerra Civil espanhola, o momento metafísico do condenado a morte, o final desencanto com a ilusão socialista depois do pacto nazi-comunista, o conhecimento dos campos de concentração (onde termina de escrever O zero e o infinito). Não surpreende que Koestler tenha escrito uma das grandes autobiografias do século 20: ao fazê-lo escrevia também a história do século.

Koestler, porém, dava por conhecidos os grandes panoramas e detalhes dessa história. Quase todos seus leitores adultos compartilhavam sua experiência quando publica Arrow in the Blue (1952) e The Invisible Writing (1954). Hoje em dia isso tudo é para muitos história antiga, quando não lhes é completamente sonegada pelo monopólio educacional meia-oito. É para subsidiar essas novas gerações que Michel Laval escolheu uma organização algo didática e bastante canhestra na sua nova biografia, explicitando que trata de “Arthur Koestler e seu século”. A alternância quase mecânica entre resumos históricos ou perfís de figuras importantes e a narrativa propriamente biográfica pode ser irritante por vezes, mas fica compensada pelo talento de Laval para aquilo que os ingleses chamam potted history, breves ensaios de bolso inseridos no momento necessário. Suas fontes são sempre secundárias, mas sua bibliografia é imensa, inteligente e bem aproveitada. Não apreendemos muito de novo, mas recuperamos muita informação esquecida ou descuidada. O livro é como um retrato de Koestler tamanho natural apoiado contra um gigantesco e enciclopédico mural revolucionário mexicano.

Em comparação com o último esforço biográfico anglo-saxão, Arthur Koestler: The Homeless Mind (Heinemann, Londres, 1998), de David Cesarani, o livro de Laval é quase folcloricamente francês. Cesarani, cujo livro ainda está nas livrarias, pratica a impecável e implacável técnica biográfica britânica, com amplo uso de fontes originais, muitas vezes inéditas, e com obsessiva preocupação pelos detalhes íntimos, especialmente os sexuais. Seu maldoso sucesso de escândalo conseguiu modificar a imagem koestleriana de ”Casanova de causas”, pela de Casanova tout court, apimentada com acusações de ter “violado” esposas de amigos não chegou a banalizar a vida de Koestler, mas mudou radicalmente a perspectiva dos leitores menos informados.

Não espanta que Laval sempre o cite com uma errata freudiana, italianizando-o como “Cesarini”. Demais, Cesarani, como especialista em temas judaicos, enfoca suas pesquisas em volta da “identidade judia” de Koestler, distorcionando gravemente o teor mental e espiritual de Koestler, bem menos judaico do que o próprio Marx.

Não há a menor dúvida de que a obra de Koestler superará esta nova tentativa de reducionismo. Que, aliás, não é a primeira, nem de longe a mais grave: a tentativa de classificá-lo maliciosamente como mero “anti-comunista profissional” foi tarefa de pelo menos duas gerações. Não que Koestler não o fosse, como foi anteriormente comunista profissional. De fato, a importância capital de sua vida e obra consiste em encarnar essa transição como uma questão decisiva do nosso tempo. No belíssimo ensaio que lhe dedica George Orwell, seu grande amigo e companheiro de lutas, o autor de 1984 diz de maneira definitiva: “O pecado de todos os esquerdistas desde 1933 em diante consiste em ter querido ser anti-fascistas sem ser anti-totalitários”.

Koestler ficou famoso como um dos mais corajosos e eficazes publicistas anti-fascistas do período incluindo a primeira denúncia na imprensa ocidental da “solução final” sofrendo persecuções e com freqüente risco de vida. Mas teve também a coragem intelectual e moral de aceitar, sobretudo no seu foro interno, que a esquerda era a outra face do totalitarismo.

O que para tantos foi uma trajetória política ou literária foi para Koestler uma aventura espiritual que reflete um momento crucial da modernidade com total honestidade e sinceridade. Seu anti-comunismo, depois de ser comunista, foi igualmente desinteressado e valente: como Raymond Aron foi isolado e caluniado por uma intelectualidade ocidental em cujas mãos estavam os instrumentos da glória e da influência. Ao contrário deles soube “desprofissionalizar-se” a tempo, salvando-se da ignomínia. Sua década de anti-comunista equivale à sua década de anti-fascista. Em 1955, quando voltou a sua primeira paixão, a ciência, escreveu no prefácio de Trail of the Dinosaur (1955): “Disse tudo o que tinha a dizer sobre essas questões que me obsessionaram, de várias maneiras, durante a maior parte de um quarto de século. Agora paguei pelos meus pecados, a amarga paixão extinguiu-se, Cassandra ficou rouca”. Nisso errou. Sua voz continuará a ecoar, clara e sonora, na consciência humana enquanto tivermos de decidir entre a verdade e a mentira, entre os fins e os meios, entre o zero e o infinito.

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