Mal de Montano

janeiro 10, 2007

FILÓSOFA VIVIANE MOSÉ LAVA AS PALAVRAS

Filed under: Mal do dia — maldemontano @ 7:38 pm

Escritora mostra sensibilidade e talento para poemas em duas obras

Por Fabrício Carpinejar*

Quase sempre, o poeta inicia o percurso pensando que sua vida rende poesia. Confunde a pulsão emotiva com o excesso biográfico. Conclui equivocadamente que basta sentir para escrever poesia. Mas sentir não faz poesia. Quem sente é poesia, não poeta. O poeta é o que não sente e se esforça para sentir. A emoção não apanha a realidade, apanha da realidade.


A poesia não é a própria vida, porém a vida em choque com a vida dos outros. Sua ausência devolvida na ausência próxima. O alheamento é intimidade; a observação, residência.


Sabe disso muito bem a filósofa e psicanalista Viviane Mosé, natural do Espírito Santo e radicada no Rio de Janeiro, que se tornou popular após apresentar o quadro Ser ou não Ser, do Fantástico (Rede Globo), onde explicava assuntos espinhosos da filosofia numa conversa simples e cotidiana. Ela se transfere com domínio para o outro. Realiza um translado lírico de vivência. Um empréstimo de casa, corpo e lugar. Sua ambição é estar fora de si.


Nos últimos dois anos, publicou: a bela antologia Receita pra Lavar Palavra Suja (Arte Clara, 2004, 91 págs.) e o lançamento Desato, a registrar suas performances poéticas em eventos como CEP 20.000 do Rio de Janeiro.


O desejo de experimentar a estranheza se revela em dois momentos preciosos:


“Desejei com toda força ser a moça do supermercado.
Aquela que fala do namorado com tanta ternura.
Mesmo das brigas ando tendo inveja.
Meu vizinho gritando com a mulher na casa cheia de crianças,
Sempre querendo, querendo, querendo.”

(Receita pra Lavar Palavra Suja, pág. 3)


“Como eu queria escrever a história de um homem em uma janela de trem em Minas, de terno escuro de linho e óculos, olhando a menina moça que vende doce de leite em forminhas de empada. Ele olha pra ela, depois o foguista ganha uns peixes do rapaz que um dia vai enamorar dela e casar. O rio corre ao largo sempre ralo e barrento. O homem do terno escuro olha como eu gostaria de ter olhado, a estação e a menina, que nem percebe o rapaz que deu os peixes e mora na pensão. Marília talvez fosse o nome dela. Marília de vestido amarelo amaria na relva o rapaz, somente para que eu pudesse compor o amarelo em Marília, ou o amor dos dois na relva. Caso pudesse suportar.”

(Receita pra Lavar Palavra Suja, pág. 44)


Viviane é uma surpresa, uma voz toda imbuída de curiosidade. Percebe que a força do poema está na suposição. Quando a poesia se torna certeza, impetra-se em religião e dogmatiza, em vez de encantar. Ao imaginar o que os outros podem estar vivendo, expressa uma urgência pessoal. Emociona, cativa, assinala o desejo com voracidade. Na pele da caixa de supermercado ou do vizinho que ama gritando ou da vendedora de doce de leite, sua imaginação está à vontade para completar o que falta conhecer. Não depende de uma escolha entre o que conhece, e sim de sua capacidade fabulosa de elaborar o invisível.


Os dois livros apresentam uma obra em formação, ainda transpirando as influências. Adélia Prado está no tom eminentemente confessional, na percepção aguda do olfato e da atmosfera doméstica. Abordam a cozinha, a espera da pesca e o ritual mínimo do interior, marcas do repertório da autora mineira (lendo Desato I, impossível não lembrar de poemas como Casamento ou Dona Doida). Manoel de Barros marca presença nos versos curtos, explicativos, circulares e redundantes, numa didática da infância. Outra correlação contemporânea é Arnaldo Antunes e a dicção infantil e perguntadeira de Coisas.


Em Desato, Viviane Mosé expande-se em diferenciar os elementos como uma menina. Conceitua o que não precisa ser esclarecido, para readquirir o deslumbramento do momento do aprendizado. Tem o propósito de ser alfabetizada de novo ou alfabetizar de novo. Nela, alternam-se as figuras de professora e aluna, de observadora e observação. Ela quer lavar a palavra, esfregar a palavra nas pedras, livrando-as da poluição do uso corrente, numa proposta semelhante à pré-história das palavras de Barros. Volta à nomeação fundadora do mundo. Explica o que é um bote de uma canoa de um barco de uma jangada. O que muitas vezes irrita pela facilidade e simplificação e, em outras vezes, arrebata pelo espírito frágil e sensível das comparações: “Minha mãe gosta de pescar em rios/ Meu pai sabe pescar em mar.”


Seu discurso lírico é arriscado, porque transforma versos que deveriam ser de apoio em alicerces, reboando superficiais e caricatos: “Eu amo meu amor eu amo meu amor eu amo./ Nossas coisas dão certo nós damos certo nós acertamos./ de neném a festas nós acertamos.” A repetição e as frases clonadas geram linhas de pouco valor literário, tal “Como se fosse tarde para mim./ E o meu Mim dissolvesse como leite em pó na água”.


Ilumina quando investe na contemplação de seus costumes: “Só sei guardar segredos dos outros./ Os meus conto pra todo mundo.” Ou no senso de humor inteligente das manias dos relacionamentos: “Fazíamos sexo quase o tempo todo. Quando não/ Fazíamos pão integral e iogurte ou cuidávamos das abelhas.”


A escritora utiliza o método filosófico de descascar as camadas da linguagem, como a esfoliar um leque ou folhear a nudez. “Eu tenho muitas coisas, quero dizer, tenho muitas camadas./ Uma camada de livros, outra de sapatos./ Tem a camada de plantas. E toalhas de rosto./ Tenho camadas de nomes e coisas que vejo.” A racionalidade, quando exacerbada, aguda-se em penetração investigativa e poética, fotografando a esmo tudo o que a cerca, valorizando detalhes até então despercebidos. O acúmulo não permite enxergar o conjunto, assim o refazendo. Tão claro, que resulta distorcido. O que importa é a falta de foco. Ao relacionar gratuidades, produz maravilhamentos como “minha pessoa é muito mais fraca do que meus pés”.


Viviane Mosé é uma grande poeta. Não precisa mais explicar sua poesia.


* Fabrício Carpinejar é poeta e jornalista, autor de O Amor Esquece de Começar (Bertrand Brasil, 2006)


SERVIÇO
Desato Viviane Mosé, Record, 89 págs., R$ 24,90


(Publicado
em O ESTADO DE S.PAULO, CADERNO CULTURA, pág. 5, Domingo, 7/01/2007)
 

Fonte aqui

 

8 Comentários »

  1. Quem recortou — entre tantas letras que se embaralham pelas mídias — a matéria acima, merece um 2007 poético e inteligente.

    olimpia

    Comentário por olimpia calmon — janeiro 14, 2007 @ 1:02 pm | Responder

  2. obrigada Olimpia!

    Comentário por maldemontano — julho 26, 2007 @ 1:33 am | Responder

  3. Meu comentário???
    Simplesmente espetacular essa capixaba e suas obras…um show!

    Comentário por Clarisse — setembro 21, 2007 @ 8:49 am | Responder

  4. Caro Fabrício,

    Não sei poetar, mas amo em intensidade e altura os poetas e seus poemas.E além do prazer de ler os versos, tenho o prazer (masoquista!!) de ler comentários, resenhas, críticas e que tais… e conheço pouco sobre a obra de Viviane Mosé e menos ainda comentários sobre. Então gostei muito de encontrar uma análise tão acurada e iluminadora sobre seus escritos. Li a orelha do livro Pensamento Chão, de sua autoria, mas ali vc. se mostrou apenas na qualidade de Mestre de Cerimônias, e o texto não evolui no sentido de fazer críticas, só elogios; o que não ocorre no texto acima, onde o olhar crítico comparece, porém, sem que, neste caso, desabone a obra e sim, ajude-nos (a nós, ricos leitores/pobres poetas sem versos) a lê-la(a poetisa) em profundidade!
    Rita Catta Preta.

    Comentário por rita catta preta — junho 1, 2008 @ 1:10 am | Responder

  5. Sempre gostei nuito de filosofia, mas depois que a vi debatendo no café filosófio tive o prazer de constatar que existem pessoas de bom senso e responsabilidade com nossa cultura e filosofia humana. beijos

    Comentário por sílvia — julho 4, 2008 @ 12:34 pm | Responder

  6. praticamente adorei

    Comentário por patrycia — novembro 13, 2008 @ 3:54 pm | Responder

  7. Adorei assistir café filosófico com Viviane Mosé falando sobre ética e outros assuntos,sentir a mesma emoção quando estudei filosofia “os grandes pensadores”no curso de Letras.parabens Viviane “grande filósofa”.

    Comentário por serilene socorro aguiar gesk — maio 11, 2010 @ 10:51 pm | Responder

  8. Oi meu nome é Rafael, eu estou para apresentar minha monográfia no Curso de Ciências Sociais e só falta uma coisa.
    A data de nasimento da Viviane Mosé, se alguém tiver, por favor entrar em contato comigo…
    é Urgente!! Valew pessoal?

    Comentário por Rafael Bertoncello — outubro 21, 2010 @ 3:43 pm | Responder


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