Quinta-feira, Março 29, 2007
TODA VIDA DARIA UM LIVRO
Estamos cercados de narrativas e histórias inventadas por todos os lados. E isso é muito bom. Entenda por que uma dose diária de ficção é essencial em nossa vidapor Fabrício Carpinejar
A história foi a seguinte: eu estava trocando dois dedos de prosa com a escritora Ana Miranda sobre a importância da ficção em nosso cotidiano, tema desta matéria. Ela então me olha muito estranha e diz: “Como assim?” Em seguida, parecendo imediatamente refeita do susto, faz uma declaração exultante, apaixonada: “O cotidiano não passa de uma ficção. Deus inventou o dia e nós, o dia-a-dia”.
Não é preciso ser escritor para desconfiar que estamos cercados por ficção desde o raiar do dia até o pôr-do-sol – nas tiras de quadrinhos do jornal, nos games, na novela das 8, nas peças de teatro, nas histórias, causos e anedotas contados por todos em conversas corriqueiras e (evidentemente) nos livros. Essa dieta de ficção começa bem cedo em nossas vidas: ainda crianças pequenas, ouvimos as fábulas contadas pelos nossos pais, imaginamos histórias sobre cigarras e formigas, contos arrepiantes sobre monstros marinhos, somos platéia para alegres enredos sobre a turma de uma menina dentuça e muito brava, as aventuras de um certo camundongo…
E isso tem prosseguimento por toda a vida. Depois, aprendemos a ler e vamos procurar livros de aventuras, romances, vamos ao teatro e ao cinema, jogamos Mario Bros, participamos de RPGs – enfim, perpetuamos nossa busca por histórias inventadas. Por que acontece isso? Melhor dizendo: por que é universal e atemporal esse desejo por ficção? Por que é essencial essa dieta de sonhos? Quais são os ganhos para quem consegue ter uma vida equilibrada entre a realidade (às vezes, a dura realidade, aquela que só costumava aparecer em alguns livros lidos na adolescência) e a imaginação? Muitas perguntas, não resta dúvida. Mas segure-se na poltrona, vire a página, respire fundo e acompanhe os próximos capítulos dessa história. Porque você também é protagonista dela.
Era uma vez…
A magia da ficção está ligada aos contos de fadas. O famoso “Era uma vez” é a tecla play do imaginário das crianças, capaz de dar movimento, luz e som aos sonhos vida afora e expulsar o medo do escuro. A disponibilidade para a ficção nos anos de maturidade depende do que é capturado nessa primeira fase da vida. Assim como nosso equilíbrio entre real e irreal, entre o prosaico e o imaginado. “A infância é a época em que essas fantasias precisam ser nutridas”, escreve o psicólogo austríaco Bruno Bettelheim (1903-1990) em A Psicanálise dos Contos de Fadas. Isso porque, sendo um estágio que vai definir um bocado da nossa personalidade futura, a infância é o terreno mais fértil para plantar os sonhos e despertar os pequenos para a necessidade da invenção para enfrentar a realidade.
Os contos de fadas representam um corrimão para as crianças firmarem os próprios passos, brincarem com as idéias e tentarem entender seu universo. “Oferecer para a criança o pensamento racional como forma de organizar seus sentimentos e compreensão do mundo só servirá para confundi-la e limitá-la”, afirma Bettelheim, que comprou a briga na defesa dos contos de fadas como o pontapé inicial de uma vida mental mais saudável. Contrariou os pais que identificavam nas histórias fantásticas uma fuga da realidade. “Não lhes ocorre que a verdade na vida de uma criança possa ser diferente dos adultos. Não percebem que os contos de fadas não tentam descrever o mundo externo e a realidade. Nem reconhecem que uma criança sadia nunca acredita que esses contos descrevam o mundo realisticamente”, diz. “A verdade dos contos de fadas é a verdade de nossa imaginação.”
Quando um pai ou uma mãe conta uma história ao filho, está se aproximando ainda mais da criança. “O potencial que teremos de abstrair vem dos encontros com nossos responsáveis. Da qualidade desse encontro. O conto de fadas é um pretexto para o diálogo”, diz o psiquiatra e poeta gaúcho Celso Gutfreind, doutor em Psicologia Clínica pela Universidade Paris XIII, na França.
O pesquisador realizou terapia durante seis anos com crianças separadas de seus pais e com transtorno de conduta no grupo hospitalar Pitié-Salpetrière, na capital francesa. Seu método utilizava contos de fadas. A experiência está reproduzida no livro O Terapeuta e o Lobo. Entre muitas crianças, Gutfreind notou que elas não tinham capacidade de abstração. Confundiam os personagens com a realidade, não como mediadores dela. “Tive que recorrer às canções de ninar e às cantigas, como se fossem bebês, porque não se distanciavam de seus problemas”, afirma.
Com as crianças, o psiquiatra aprendeu duas virtudes que são benéficas nos contos de fadas – e que, no limite, valem para todos nós, que adoramos ouvir (ou ler, ou assistir) uma história. Primeiro, a situação de plena troca. O menino ou a menina, durante meia hora, tem toda a atenção voltada para si. Alguém está olhando firmemente para seus olhos, dando seu tempo, importando-se com sua reação, alisando seus cabelos. “A criança é o ator e a mãe ou o pai é sua platéia”, diz Gutfreind.
A segunda se refere à estrutura aberta e simbólica do conteúdo. “A criança se projeta na história, joga nela seus conflitos, seus desejos, suas brigas, sem que a história a ameace. É ela mas não é ela. As fadas, as bruxas e os ogros formam imagens indiretas do pai ou da mãe. São eles mas não são. O filtro simbólico sossega o coração da culpa pelos sentimentos adversos”, completa. Para atiçar a alegria criativa e mantê-la acesa durante a vida inteira, o Gutfreind tem a receita na ponta da língua: “Conte para seu filho histórias que dão prazer a você. Só podemos nos encantar quando estamos encantados”.
Reeducação
Estamos cercados de linguagem e narrativas por todos os lados, da manhã à noite. Na TV, nos papos de bar, na crônica lida entre um compromisso e outro. Ao descansar, ainda estamos operando fantasias e sob o encanto da ficção. Tanto que a escritora Ana Miranda não desperdiça o mistério de nenhum dos seus sonhos. A autora de Boca do Inferno, romance sobre o poeta Gregório de Matos, anota seus devaneios em uma série de caderninhos, hábito preservado de menina. “Tudo o que faço em minha vida tem conexão com o mundo onírico”, diz. Ainda hoje se vendo como uma criança, de olhos graúdos e penteados pela luz, o excesso de infância está guardado dentro dela como um alçapão de histórias fantásticas. “O silêncio formou-se em mim como um mundo ficcional. Eu não dizia nada, não respondia a perguntas, depois abria o caderno e escrevia o que eu não havia dito. E escrevia corrigindo o mundo, adequando-o a minhas necessidades internas”, afirma.
As dores e as alegrias de nosso cotidiano e dos nossos sonhos não sobreviveriam sem uma narrativa, que une todas as manifestações culturais num único DNA. Como escreveu o filósofo alemão Walter Benjamin: “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”.
A arte é a vida organizada, distribuída em capítulos e episódios. Dependemos de uma síntese, para que os milhões de gestos, vozes, palavras, sons, tiques, hábitos e cheiros não caiam no vazio. Onde estariam os milhões de frases ditas nas manhãs, nas tardes e noites, se não houvesse uma coerência invisível interligando-as, cruzando os fios em longa tapeçaria e formando um sentido para a memória?
Por isso, deixar-se encantar por histórias é essencial. E não só as fábulas, cuja origem é mesmo fornecer uma explicação fantasiosa da realidade. Parece até um paradoxo digno de um conto, mas não é: a ficção, por nos permitir sair um pouco da realidade, é como aqueles períodos de férias em que várias idéias e resoluções para nossa vida aparecem com clareza. Distantes das preocupações do cotidiano, mais leves para encarar a vida e com a cabeça mais descansada, as férias nos permitem esses vôos mais distantes. Assim pode ser entendida a ficção. Ela é como esse período longe de tudo, férias da mente e do espírito, em que afastados das durezas diárias e encantados com enredos que muitas vezes (ainda bem!) em nada se parecem com a vida real, somos obrigados a rever nossos valores, nos defrontamos com outras alternativas para a vida. A ficção – as histórias, a imaginação – nos reeduca para a vida.
Por isso é que alguns personagens da literatura (e, mais tarde, aqueles surgidos do cinema, das histórias em quadrinhos, das séries de TV) ajudaram a moldar a visão de mundo de gerações inteiras de leitores em todo o mundo. O cavaleiro delirante de Dom Quixote, de Cervantes: o sonho e aventura. O Hamlet da peça homônima de Shakespeare: a dúvida. A provinciana dona-de-casa adúltera de Madame Bovary, de Flaubert: a insatisfação. Sentimentos e modos de encarar a realidade que, em larga medida, serviram de – modelos – para que milhões de apreciadores desse livros pudessem interpretar a realidade e preecher seus dias com outras maneiras de tocar a vida.
Observação
A jornalista Eliane Brum, autora de A Vida que Ninguém Vê, uma coletânea de reportagens em que recupera a história de anônimos, encarna no jornalismo o espírito de Sherazade, a contadora de histórias das Mil e Uma Noites. “Contamos sempre a mesma história. A nossa. E quem lê também lê sua própria história, mesmo que esteja lendo a do outro. Contamos e lemos histórias para ter certeza de que existimos. E de que não estamos sós na nossa dúvida sobre ser”, afirma. “Acho que contamos histórias na tentativa de preencher nosso horror. Nosso horror de vazio.”
A repórter descortinou – numa série de reportagens escritas como se fossem contos literários, repletas de recursos que estamos mais habituados a encontrar nos livros de ficção – personagens invisíveis da rua, acostumados a ser olhados com esquisitice, como produtos da loucura urbana, ou com indiferença, apagados como estátuas que perderam a novidade e fazem parte da paisagem. Para ela, olhar o cotidiano sem preconceito, buscando enxergar as muitas histórias de cada um, é um dos elementos que a empurraram para a profissão de repórter.
“É o que me fascina nas pessoas. O quanto elas são capazes de reinventar sua história apesar da brutalidade da vida. Em meus momentos de crise, declives de auto-estima nos muitos serpentários humanos desse mundo, eu costumo dizer a mim mesma: ninguém vai me dizer quem eu sou, não dou a ninguém o poder de dizer quem eu sou, eu escrevo minha história”, diz Eliane.
Reinvenção
A ficção não é exclusividade dos artistas, e sim uma reserva de sanidade acessível democraticamente. Converse com o encanador, com o eletricista, com o carteiro, com o cobrador de ônibus, e eles contarão sua vida como se fosse um livro. Qualquer um acredita que sua vida rende uma obra. A ânsia pela história sinaliza o desejo diário de ser importante, de ser útil, de ter feito o certo.
A invenção representa uma catarse, desplugar-se por alguns instantes de um mundo repleto de exigências, cobranças e demandas profissionais e migrar para um faz-de-conta, feito de formas, sinais, tramas atemporais. Algo como uma dimensão paralela, em que o prazer grita mais alto. Uma saída para juntar os cacos, preservar a solidão e a unidade. O que explica o corretor de ações fazendo trabalhos de marcenaria nas horas vagas, a psicóloga pintando quadros em seu lazer, a professora costurando bonecas no intervalo das aulas, o engenheiro compondo versos durante as noites. A gula pelo conhecimento e sensibilidade não tem limites.
Um exemplo é o taxista de Porto Alegre Mauro Castro, 43 anos, casado e pai de uma filha adolescente. Um passageiro mudou sua trajetória. Ao conduzir com freqüência o diretor de um jornal popular da capital gaúcha, foi convidado a escrever crônicas sobre o que acontecia em seu veículo de prefixo 1296. Já são mais de 200 textos em quatro anos, que resultaram no livro Diário de um Taxista. “Escrever é exercitar. A ficção me salvou de ser mais um entre 4 mil taxistas da cidade. Eu seria mais um, sou menos um”, afirma Castro.
A ficção foi quase como um programa de reabilitação. Na época anterior às crônicas, Mauro se impacientava com o trânsito, com os sucessivos engarrafamentos e com o relógio apertado. Cumprindo o turno das 7h às 17h, enfrentava a sina de morar no carro praticamente o dia inteiro numa capital movimentada. Saía engavetado do assento do carro. “Aprendi a deixar um pouco a direção e a entender a posição dos pedestres e dos demais motoristas. Não sofro mais de ansiedade. O engarrafamento pode ser lúdico. É um tempo maravilhoso para bolar enredos”, diz.
Imaginação
Toda família forma uma biblioteca. Cada elemento dela é como se fosse um livro único. Tente conversar com os irmãos, com a mãe, com o pai, consigo mesmo, e verá versões de uma mesma cena – mais do que verdades. O pai descreverá igual lembrança de um modo bem distinto do seu. Quem tem razão? Por mais que se discorde: ambos. Contar é alterar. Inviável a tarefa de repetir perpetuamente, tintim por tintim, uma fábula aos filhos antes de dormir. Haverá alguma mudança de plano, um detalhe adicional, uma adaptação que fará a maior diferença. E a criança espera justamente a variação, não o que já ouviu e sabe de cor.
A incompetência de ser igual e a tentativa de pessoalizar a existência é que enche as estantes de livros, filmes e CDs. “Somos todos ficcionistas… Alguns, profissionais”, afirma Luiz Alfredo Garcia-Roza, escritor, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de Freud e o Inconsciente.
De acordo com ele, que se consagrou também ao gerar o detetive Espinosa em uma série de romances policiais, a curiosidade é a principal característica da ficção, que leva à suspeita e desemboca na descoberta. Entre as três atividades que realiza – filosofia, psicanálise e literatura -, todas têm em comum a prática da desconfiança em nome de um entendimento maior da realidade.
O detetive Espinosa (dos romances O Silêncio da Chuva e Uma Janela em Copacabana) não o tornou melhor. “Eu diria que me deixou satisfeito”, diz, brincando. As vantagens com a elaboração de histórias de investigação no Rio de Janeiro foram subjetivas. “O grande ganho pessoal resultante da ficção literária decorre da potência que ela tem de aumentar indefinidamente os limites do universo de cada um de nós, autores e leitores. É um ganho semelhante ao da criança que fantasia. Ela está ‘em obras’, construindo seu mundo.”
Era uma vez…
Para saber mais
Livros:
* A Psicanálise dos Contos de Fada, Bruno Bettelheim, Paz e Terra
* Fadas no Divã, Diana e Mario Corso, Artmed
* O Terapeuta e o Lobo, Celso Gutfreind, Casa do Psicólogo
Matéria de Capa da revista Vida Simples, edição de abril. Confira.
Fonte: http://www.fabriciocarpinejar.blogger.com.br/