Mal de Montano

outubro 5, 2006

Resenha – A Árvore das Palavras – Parte 2

Filed under: Montanas,Resenhas — maldemontano @ 1:53 pm

Por Fernanda Benevides Carvalho   

Semana passada, tinha iniciado a boa campanha, junto com meu amigo Mineo, de reler esse A Árvore das Palavras, de Teolinda Gersão, e de outros livros que merecem igual tratamento, para adiar o término da leitura. À tertúlia hebdomadária de quinta-feira, Mineo!  

A segunda parte é sobre Amélia, mãe de Gita, nossa protagonista de até então. Amélia se vê excluída da cidade de Lourenço Marques e, também da África, para onde partiu aos 19 anos, em busca do anúncio de jornal, o anúncio da virada de vida, que é também um vaticínio, especialmente no contexto de A Árvore das Palavras. O anúncio-prognóstico que vai selar o casamento de Amélia com Laureano. Talvez se possa apreender a metáfora dos destinos: Amélia costureirinha, uma moira que tece, mas não consegue fiar o próprio percurso, lança-se à ação dramática pelas sugestões esperançosas dos anúncios. 

 Lança-se ao mar! Amélia embarca, olha para Os Jerônimos, a Torre de Belém. Chovia, à partida. Tudo muito melancólico: céu cinzento, mar encapelado, nenhuma linha no horizonte, e gritos impressionantes de gaivotas agitadiças. Arrisco a dizer que Dom Sebastião estava rondando, numa galé de velas castigadas. Dom Sebastião, sim, aquele que não voltou, o baluarte dos valores dos antigos navegadores, que alertou para a derrocada iminente, se os portugueses continuassem com a lógica do oba-oba de fazer riqueza fácil.   

E ela, ensimesmada, chora. Amélia chora como Ulisses, na terra da princesa feácia Nausícaa, lembrando de seu antigo amor – que tentou abiscoitar, e conseguiu, o dote de uma tal Adelina sonsa, precatada que não recebia, como ela, Amélia, as pedrinhas do amante à janela do quarto de dormir. 

O relato da viagem marítima, fantástico. A costureirinha contorna toda a costa atlântica do continente africano, entra no Oceano Índico. O momento crítico ocorre na passagem do Cabo da Boa Esperança, onde o barco balança muito. Não estamos diante de nenhum feito heróico. Hoje em dia qualquer canoeiro ultrapassa o Bojador, e, mais e mais nadadores, à unha e pouco pêlo, baterão novos recordes nos próximos quinze minutos com crawl e nado-borboleta, no Canal da Mancha, como preliminares para o Pan-2007, no Rio de Janeiro. Mas o relato é fantástico por duas razões simbólicas: a rota é a mesma que os portugueses empreenderam com a grande expansão ultramarina, em direção às Índias, Amélia costureirinha cruza o continente com propósitos arrivistas de ganância; em segundo lugar, suas fantasias dos bailes da primeira classe do barco, sonho real?, ou das viagens de suas freguesas ricas, são escapes à própria condição de pobreza, que já vinha desde a vida na casa da madrinha, em Lisboa. 

  Amélia acaba rancorosa, isso sabemos, estava na primeira parte, foi assoprado por Gita. Agora está com expressão de não-pertencimento à rua das pedras, à segunda parte, em que  ela se agiganta pelas ruas, mas é menos do que uma sombra elástica aprumada nos saltos. 

 Amélia está com tédio de Madame Bovary. De salto alto, uma agulha, tenta se equilibrar pelos vãos da rua pedregosa, contra todas às evidências e circunstâncias do lugar. 

 Os anúncios, de novo! Sugestões de aromas sofisticados dos perfumes, poses nos cafés e as maneiras artificiais que ela gostava de mimetizar das mulheres finas. Os passeios pelas vitrines elegantes, ou galerias de lojas, com seus pisos de mármore e mesas douradas, os devaneios sobre outras viagens de pessoas admiradas que sofrem charmosamente de ócio. Os anúncios são um passaporte para o glamour, mas ao mesmo tempo são o meio de que se valem as pessoas chamadas mais simples, como Amélia, como ela própria chama, gente que tem sensibilidade para ver tamanha graça neles. Uma tensão entre liberdade e necessidade se oculta na tabuleta, será? 

  O anúncio que visava fins matrimoniais, que ela, com seu acanhamento de costureirinha, respondeu, era este:  

  Cavalheiro, solteiro, trabalhador e de bons sentimentos, 30 anos, residente em Moçambique, procura menina honesta até 25 anos, para fins matrimoniais. Favor enviar fotografia, que será devolvida, caso não interesse. Assunto máxima seriedade. Escrever para: L. C. Caixa Postal nº…, Lourenço Marques, Moçambique. 

  E outros… “Lembrar-se-ia desses anúncios, a par dos outos, dos anúncios misteriosos que lia no jornal, em que as pessoas brincavam com o destino como se fossem comedores de fogo ou balançassem lá em cima, no trapézio, em risco de vida ou de morte, suspensos por um pé” – a segunda parte do livro é narrada em terceira pessoa, e trata das fatalidades dos anúncios.    

 Recortes de jornal que agora Amélia lê com diversão escancarada de Bovary velha, sonhando com um engenheiro misterioso, “oh céus, que tolice que era acreditar nessas histórias de cavalheiros honestos e de casamentos à distância”, já inteirada dos modos da sociedade com a qual se identifica, cada vez mais refratária à África. Junto com o horóscopo, eles sempre a atraíram, e o encanto permanece. 

 Reze nove avemarias durante nove dias e peça três desejos: um de negócios e dois impossíveis. Ao nono dia publique este aviso e cumprir-se-á mesmo que não acredite. 

 Oração ao Senhor dos Amarrados. Oração dos Aflitos: Aflita se viu a Virgem aos pés da cruz, aflita me vejo eu, mãe de Jesus. Mande publicar no terceiro dia e aguarde o que acontece no quarto. 

  Oração a Santo Onofre: Ó meu glorioso Santo Onofre, que ao monte Tabor subistes, de hera verde vos cobristes,  

  Cavalheiro recém-chegado da metrópole procura alojamento, 

 Serralheiro mecânico oferece-se para emprego compatível, 

 Zuze, Médium-Vidente Espiritualista e Cientista, Adaptado de Poderes Absolutos. Resolve problemas difíceis ou impossíveis em 15 dias, com eficácia e garantia. Aproxima e afasta as pessoas amadas com rapidez total. Se quer prender a si uma vida nova não perca tempo, contacte o Professor Doutor Mestre Zuze.   

Amélia é uma mulher cindida, dois países, duas vidas. Como? Entre o quê? Atração e repulsa, curiosidade e medo.   

É pela loteria das regras dos anúncios e pela esperança do impossível que vai ser marcada indelevelmente a personagem Amélia, diante da cidade de Lourenço Marques. Amélia: Bovary que podia ter sido e que não foi?

outubro 4, 2006

Tahar Ben Jelloum – Poemas Escolhidos (1966/1995)

Filed under: Montano por um dia,Resenhas — maldemontano @ 8:38 pm

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Por Hélio Meira de Sá  

 

A obra literária e ensaística do marroquino Tahar Ben Jelloun é com razão celebrada nas duas margens do Mediterrâneo. O escritor ostenta inúmeros prêmios, dentre eles o Prix Goncourt, a mais importante honraria literária francesa. Ainda que objeto de críticas de fundamentalistas extremados, vocaliza o vigor da contestação dos que se insurgem contra a opressão aos povos árabes, seja em seu próprio território, seja na condição de imigrantes vilipendiados em terras européias. É exatamente o entrelaçamento do engajamento político com a evocação poética das tradições culturais árabes ou do Magreb (região formada pelo Marrocos, Argélia, Mauritânia e Tunísia) que lhe confere destacado papel na literatura magrebina de expressão francesa.  

Pode causar estranheza, contudo, a opção aparentemente paradoxal pelo idioma do colonizador francês como a língua de seus escritos, procedimento adotado também por outros autores magrebinos de sua geração. Ocorre que a possibilidade de atingir leitores extraterritoriais significa o não-confinamento a uma comunidade ou região. Ben Jelloun argumenta que os “franceses se instalaram no Magreb, e eu me instalei em sua língua”. Trata-se do conceito de “violência da escritura”, que preconiza não o “abandono da língua francesa, mas a sua violação de modo a golpear em todos os níveis – sintático, morfológico, gráfico, simbólico e fonético –  a lógica original da língua francesa”.  

A coletânea “Tahar Ben Jelloun: poemas escolhidos (1966-1995)”, tradução de Cláudia Falluh Balduino Ferreira, Editora da UnB, nos apresenta sua produção poética, pouco conhecida dos leitores brasileiros. O poeta nos adverte de chofre que “não começou fazendo poemas de amor”. Não poderia ser diferente. O ritual iniciático se deu no cárcere, entre 1966 e 1967, onde foi enclausurado após sua participação nas revoltas estudantis de 1965. Escrever naquela situação traduzia rigorosamente a “cólera e a necessidade de reagir contra a injustiça e a opressão, contra a mentira e a traição”. Não obstante a advertência, sua poética densa é perpassada pelo sopro doce, pela dicção terna e pelo toque sensível de quem jamais se desgarrou da causa humanista, do viés fraterno e solidário que permeia semelhante comprometimento político.  

A demarcação do espaço poético na obra de Tahar Ben Jelloun molda-se às dicotomias com as quais trabalha, resultantes das fronteiras criadas com as rupturas culturais impostas pelo processo colonização/descolonização. Percebe-se um jogo dialético de ausências e de presenças, referências temporais e espaciais resgatadas pela “erva molhada de uma memória envelhecida” de um imigrante instalado na França. A vitalidade do passado conjuga-se à impotência do presente: “eu possuía as chaves da cidade  […] hoje sou um cemitério de terracota”.  

As imagens se apóiam em pilares básicos de construção. A memória obviamente como elemento deflagrador de sua poética. A pedra, matéria incoercível, testemunha que simboliza a trajetória temporal. O vento que varre os espaços, impulsionando o tempo e arejando a memória. A areia, o resíduo da dissolução do passado. A dor e o ódio, como elementos que se originaram dos conflitos.  

Há, no tocante ao eixo temático, poemas em que denuncia os infortúnios do povo palestino ao deparar-se com a terra usurpada. A dureza metálica das máquinas dos ocupantes surrando impiedosamente a terra. No dramático poema “As amendoeiras feridas morreram”, por exemplo, relata ao filho distante a destruição de sua aldeia pelos israelenses. A narrativa pungente, emocionante, reconstitui os episódios de 1948, no deserto do Sinai, que desencadearam os conflitos ainda hoje irresolutos: “eles abriram nossas chagas e bebemos nossa morte […] Foi a única vez que chorei. Eu sei, tu não gostas de lágrimas, desculpe-me se as minhas caíram. Mas a vergonha as reuniu em meu corpo como pedras, como os dias, como as preces”.  

O poema “Aurora”, que se associa à mesma esfera temática, faz citação ao poeta palestino Ghassane Kanafani assassinado por um comando sionista em 1972. Os poemas intitulados “Não identificados” homenageiam os anônimos mortos, cujos corpos, depositados ao “flanco da colina”, ressurgem como “estátuas que se levantam ao vento da chama”. 

O ponto de inflexão da poesia-denúncia é percebido no momento em que invoca a pátria. Aí, a ternura e erotismo, cúmplices do vento e da noite, descortinam uma outra face da poesia de Ben Jelloum. Em “As moças de Tanger”, embora a antinomia continue sendo a força motriz, reveste-se da sensualidade que vem da “fenda dos lábios por onde passa a música que faz dançar os espelhos”. Utiliza-se da evocação elegíaca, com uma voz de soluço e riso, ao constatar uma pátria que não tem mais rosto: “O Marrocos, se fosse um rosto, seria uma luz, uma palavra do vento, deriva das estações, enigma das pedras”.  

A cidade de Fez emerge dos subsolos da lembrança, como “pedras grávidas cospem lembranças”. São vários poemas dedicados à sua cidade natal. A palavra é o que lhe resta neste exercício surdo de estreitar a distância que o separa de sua terra ou de amainar a dor que o atormenta. Sua poesia tem o gume da lâmina metálica que resplandece ao sol cego. Tem o timbre seco da amêndoa pétrea de que já falou João Cabral de Melo Neto, com quem, aliás, mantém uma certa proximidade imagética, assim como a poesia cabralina aproximou Pernambuco da Andaluzia. 

A importância de sua obra é crucial, sobretudo, neste início de século, quando as discussões sobre o choque de civilizações ganham espaço nos meios acadêmicos e na mídia, fomentadas pelas conseqüências funestas do recrudescimento da incompreensão mútua entre culturas e povos. Tahar expõe as fraturas das identidades nacionais, ao mesmo tempo em que as reconstrói, na condição de imigrante que vivencia a difícil realidade de estar entre duas nações, entre dois territórios, entre duas línguas e entre duas culturas, com a amarga sensação de não-pertencimento. 

setembro 28, 2006

Resenha – A Árvore das Palavras – Parte 1

Filed under: Montanas,Resenhas — maldemontano @ 3:43 am

 Releituras

Por Fernanda Benevides Carvalho 

Hoje é quinta-feira, dia de palmeirense comer spaghetti e de atualizar o blog para o Mineo. Teolinda Gersão, em A Árvore das Palavras. Voltei à mosquitada. Às terçãs e quartãs de Lourenço Marques (minutinho para ida rápida ao wikipedia: fundada em 1782, feitoria com o nome de Lourenço Marques; em 1877 foi elevada à vila e sede municipal e em 1899 tornou-se a capital da colônia portuguesa de Moçambique; a partir dos Anos 40 e 50, do século XX, a cidade expandiu-se, passou a se chamar Maputo a seguir à Independência, em 1975). Como ia dizendo, à época que corre essa história, de A Árvore das Palavras, Anos 60, Lourenço Marques era colônia de Portugal.  

Lourenço Marques, c. 1905

Algumas questões me vieram à cabeça durante a leitura de A Árvore das Palavras. Uma delas tem a ver com essa habilidade de certos escritores em fazer o transpasse da vida para a sintonia fina da escrita: quais as relações entre arte e vida para o artista; esse seria um ponto – será de representação, anarquização, fuga, sublimação?

Surge nova pergunta: se se percebe algo luminoso na escritura, por que mecanismos isso se dá? Considero, para tanto, o escritor e o seu ofício, sem entrar nas linhas de produção que são estabelecidas entre produtor, produto, mercado, arte (e de artistas marginalizados desse processo).

Se esmiuçar essa fórmula mágica é tarefa difícil, proponho mais um desafio aos sofredores do Grande Mal e a você, Mineo, o de rasgar a intimidade nesta página virtual. Como é para vocês ler um livro muito bom?

Ao começar A Árvore das Palavras, dei-me conta que a leitura corria numa velocidade tal, tive de voltar. Eu já tinha ultrapassado a primeira parte. Mas como o garoto de O Barão das Árvores, do Calvino, subi numa árvore para espiar, decidi palmilhar o quintal da Casa Preta. Fiquei “a catar as palavras” como frutos deitados ao chão, num sombrão de pé de bananeira, no calor do sol cegante e do vento – bafo quente de animal. O vento morno fazia as folhas dançarem, tenros ramos de jacarandá, folhas de ervas nascediças, hibiscos. O sol? Um olho azul. Palavras de Teolinda Gersão.

Que bela cena, a inicial. Lourenço Marques estática e extática pelo calor, nunca mais vou usar a expressão “calor senegalesco”, vou adotar “moçambicano”, que vem com cheiro de flor e fruta.

“Na Casa Preta não havia medo dos mosquitos. Nem se receava, a bem dizer, coisa nenhuma. Na Casa Preta as coisas cantavam e dançavam. As galinhas saíam do galinheiro e pisavam a roupa caída do estendal, cagando alegremente sobre ela, Lóia gritava enxotando-as mas desatava a rir ajoelhada na terra, esfregava outra vez a roupa com um quadrado de sabão e regava-a com o regador cheio de água. Parecia divertir-se a fazer as coisas, porque ria sempre e nunca prendia realmente as galinhas, que tornavam a cagar na roupa, que ela regava outra vez – a água saía em chuva pela mão do regador que balançava na mão dela. E pelo caminho entre a torneira e a roupa, ela ia ressuscitando as flores”.

 Lóia é a ama-de-leite. Tão presente como Gita, a narradora, danada, gostava era da Casa Preta, mas vinha do núcleo dos brancos pobres. Seus pais, Amélia e Laureano, trata pelo primeiro nome, talvez ganhe com essa distância o poder de observação, e possa nomear seus dilemas a partir da distância, é preciso avaliar a herança que se recebe, talvez seja o primeiro dilema, o de descobrir o que fazer com a carga de origem. Amélia talvez simbolize autoritarismo, preconceito. Laureano é o seu avesso. Mas o vínculo de Gita é com os pretos. Npiné oiwe. 

Como se fechar na Casa Branca se as coisas dançavam era na dos pretos? Npiné oiwe, npiné oiwe.

Estou aqui também, nestas páginas, esturricada sob o sol lascado. Desço da árvore. E espero: cairá a noite como o copo de cerveja preto entornado pelo pai Laureano. 

Agora está fresquinho, debaixo das nuvens da manhã serena de Brasília. Já ultrapassei a cidade-porto, a cidade-cais. Foi-se o primeiro capítulo. Livro que arrasta a gente, de cambulhada, acaba logo também. Releio de novo a primeira parte. E você Mineo, o que faz em circunstâncias semelhantes?

Quero acompanhar Laureano, flagrá-lo na varanda bebendo cerveja. Conheço muita gente que está sempre no mesmo lugar fazendo a mesma coisa.

Ajustei minha lente de Big Brother Literário, Big Brother de Montano, coisa mais brega, ser voyeur. O abelhudo literário perde para a tara do voyeur tradicional, que observa ao vivo e a cores. Será mesmo que existe perda? Talvez o Montano invasor de privacidade tenha prazeres mais sofisticados; o que acham Perséfone, Pandora, Montanas?

A vida de Gita em relação à da mãe Amélia, impregnada de tensão… quero ver as modificações e ações que exercem uma sobre a outra, vou relendo o pay-per-view das melhores imagens do percurso da heroína. E o que será que enfeitiça Gita e Lóia?

Escuto vozes, as imagens surgem das vozes. A prosa de Teolinda é pautada. Música?

Não é linear.

Teolinda propõe um jogo de contar.

Gosto dele, traga-me, leva-me. Para além da forma ousada, ela é também painelista da sociedade.

O que me levou de arrastão, explico a você Mineo, humorista dos humoristas: enredei-me no fluxo de consciência dessa prosa. Olhe como não estou exagerando: “… jogarei um jogo contigo. Assim, quando chegas à tarde, e chamas, entrando a porta: Giiiiiitaaaa… – só o silêncio responde, a casa parece vazia e sonolenta. Porque eu não estou, como à hora do almoço, à tua espera, à janela, transformei-me num animal pequeno, escondido em passos furtivos atrás do guarda-louça. E tu deixaste de ser tu, és agora um animal grande chegando, fatalmente chegando, cada vez mais perto…” E vão despencando seis parágrafos, desses caudalosos de sete linhas cada um: “Sinto-te caminhar, invisível, por entre os móveis da entrada…”; “Ser encontrada é uma morte…”; “E agora és de novo tu, de novo um homem, o homem amado desta casa…”; “Então sobrevém um grande riso e uma grande paz…”; “Nessa altura sinto por ti uma grande ternura…”; “E depois fecho os olhos e sei que também vou cair dentro…”. No teatro, eles seriam considerados bifes, os atores têm pavor dessas falas longas, bifões provocam falhas no ritmo. O prodígio de Teolinda está em fazer com que esses T-Bones, na contra-corrente da linguagem sumária de frase curta e do estilo nervoso, dê mais estocadas. 

Procuro informações na internet, Teolinda Gersão. Nas fotos, uma mulher que vive além do tempo, numa idade indefinida. Foi Milan Kundera quem disse que talvez só tomemos consciência de nossa idade em momentos excepcionais. Esta é a nossa gaja. Teolinda é da leva de 1940, rosto redondo, muito claro, com cabelos repicados para fora. Simpaticíssima nas entrevistas. O Ruffato, sabe-tudo, parece ter afinidade com essa prosa bem proseada e conhecer a fundo os escritores do além-mar. Tem sim um artigo. Falou sobre A Árvore das Palavras, precisamente. Pinço em seguida uma tese da fefeléche (faculdade de filosofia, letras e ciências humanas da usp), alguém a chama de senhora metaleira das palavras, aliás, o “senhora” por mim acrescido não pela idade, que não lhe pesa, devo chamá-la com o, como direi?, epíteto de quem se coloca na sua autoridade. 

 Não sei se a sua escritura se compara à guitarra de Angus Young, do Ei ci di ci. O que me vem à cabeça: Tom Zé, dos Jogos de Armar, com seus gêneros chameguinho-choro, improviso hip hop, arrastão, estilo trovador, e por aí afora. Os entrechos de Teolinda – prosa cheia de costuras, urdiduras –  têm variações. Chamarei a isso de densidade.  

Bibliografia de fila dobra-quarteirão, vou me inteirar de tudo. Estréia: O Silêncio, romance (Anos 80). Depois vieram: Mulher Dormindo; Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo; História do Homem na Gaiola e do Pássaro Encarnado (infantil); Os Guarda-Chuvas Cintilantes (diário); O Cavalo de Sol; A Casa da Cabeça de Cavalo; Os teclados; Os Anjos; O Mensageiro e Outras Histórias com Anjos (contos); Histórias de ver e Andar (contos de 2002).

A Árvore das Palavras está cheia, carregadinha. De palavras-vivas. Por causa de um dos títulos da Teolinda, Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo, lembro-me da famosa história dos pintores Zeuxis e Parrhasios. Arte é artifício. Para reproduzir a vida? Fico com a pergunta. Reza a tradição, sobre o caso dos pintores que… (eu ia dizer pintores gregos, mas um dos meus professores ligado em história clássica uma vez estrebuchou de raiva com o meu cretinismo geográfico incapaz de diferenciar gregos, aqueus, jônios, dórios).

O tromp-l’oeil de uvas pintadas por Zeuxis enganou os pássaros que, não sendo esses afiados gaviões-do-cerrado que têm atacado as pessoas de bem em Brasília, foram bicá-las. Na versão que me contaram, a tela teria sido perfurada pelos pássaros. Seguro de si por ter iludido os bicadores, Zeuxis sugeriu que Parrhasios pintasse uma cortina. (Lacan utiliza a palavra véu, e diz que o véu pintado por Parrhasios “numa muralha para ocultar de Zeuxis o seu ardil” é a própria arte, que seria, por fim, uma técnica de ocultar, se entendi direito, porque retiro informações sempre de segunda mão; alô, Montanos-Universitários e Montanas-Universitárias, peço ajuda!). Ao tocar no véu ou na cortina ou em coisa que o valha, para sua surpresa e terror, Zeuxis constatou o grande engano: não se tratava de objeto, com tridimensionalidade, mas sim de pintura, era um dos trabalhos-de-mestre de Parrhasios.

Isso tudo para voltar ao assunto de que talvez o maior desafio do artista, seja ele realista ou não, é unir arte e vida. Esta junção particularmente feliz, que pode criar uma presença vital no discurso literário, encontra-se em Teolinda Gersão (pausa para inserir uma propaganda: Enrique Vila-Matas, nosso autor-inspiração, recebeu prêmios e loas por seu Bartleby & Companhia; trata da poética de escritores que mergulharam na vida porque esta lhes pareceu um gesto mais belo e radical do que a literatura, de onde, ato-contínuo, desapareceram, como uma palavra que tende ao silêncio ou à entropia; por mim, que sou dada a experimentar paradoxos, o tema só interessou porque foi transformado, em irretocável forma, nas páginas de um livro inesquecível… vamos dar mais pitacos sobre o Vila-Matas em nova oportunidade). 

 Minha conclusão não fecha o raciocínio… Míope que sou, aproximo-me das miragens antes das substâncias.

Teolinda, como descrevê-la?Teolinda pintora, música, o que mais se pode agregar à sua prosa? Este trecho não comprova que a vida pode ser criada em palavras?  

“Um barco é como uma casa, verifico. Uma casa que balança, e anda de lugar em lugar. Nem sequer falta o cheiro da cozinha, para onde se desce por uma escada íngreme, que tem um último lanço de ferro. O fogão está aceso e dois homens em tronco nu cortam legumes em cima de uma tábua, atiram os restos dentro de um alguidar onde se amontoam espinhas de peixe, cascas de cebola e borras de café.Tomem um copo, diz um dos cozinheiros pondo cerveja noutra mesa onde já estão três homens. Sentamo-nos e bebemos, está calor e o balanço do barco e a cerveja causam-me vertigens, mas por nada do mundo me iria embora porque tudo o que agora acontecer faz parte de uma onda em que eu entrei. O marujo que pintava a escada juntou-se a nós, apertamos mais as cadeiras para lhe dar lugar, rimos com força, falamos sem querer alto de mais. Duas conchas grandes servem de cinzeiro, todos fumam, tu também, há uma nuvem que se adensa em volta. E eu bebo mais cerveja e sinto o navio andar à roda, agarro-me com força na beira da mesa e acho que tudo é possível, o barco poderia, enquanto aqui estamos, arrancar, e chegaríamos uma manhã a Singapura”. […]    

setembro 24, 2006

Escondida no terraço

Filed under: Resenhas — maldemontano @ 10:50 pm

 

   Por Solange Pereira Pinto 

Pow! Pow! Foi seco. Preto e Branco. Simples? Duplo. Duro. Não entendia aquela impulsividade. Compulsiva. Misturava medo, vergonha e prazer. Olhava de longe e não acreditava. Danado. Eu tentava negociar. Saravá. A menina gritava. Mãeeeeee! Pára! Calma. Respire fundo. Oh mãeenhe! Psiuuu! Silêncio, gente. Silêncio! Por favor, assim as coisas vão piorar. Virei refém. Vai…continua…anda… Aquela capa apontada para minha cara. Não tinha forças para reagir. Onde me esconder? Talvez debaixo da cama. Ou no banheiro? Havia passado uma hora. Palpitação passando pela garganta. Minhas idéias pelos poros. “Hein seu branco safado? Ninguém aqui é escravo de ninguém”, berrou. Ele veio de Sertânia, interior de Pernambuco e chegou em São Paulo. Sabe das coisas. Até do que não sabe, sabe. Se chama Marcelino. Sua origem afiou o olhar. A cidade grande a língua. O tempo as idéias. Negreiros bem ali na minha frente. Forte. Intenso. É o porta-voz. Confessa. Dubla. Denuncia. Meus olhos não piscavam. Eram agora lentes coletoras. As desigualdades. Os preconceitos. As marcas. Os fingimentos. A violência. O silêncio. A vida e a morte severina. Urbana. Intestina. Rural. Favelada. Panorâmica. Ainda assim não perdia a sensualidade. O sexo. O tesão. Lembrei das covardias. Das contradições. Das sacanagens assentidas. “Devia nascer sem coração”, ele sussurrou. Passa logo mulher! Anda. Falta pouco! Minha agonia de chegar ao fim sambava entre meus dedos. Num descuido, corri. Fui para o terraço. Escondida nas alturas. Recostei-me nas barras de ferro. Enferrujadas. Olhei para cada lado. Abaixei os olhos. Trêmula. As páginas saltavam. Ligeiras. Lidas. Refletidas. Impressionadas. Finalmente estava a sós com “Contos Negreiros”. Na boca o gosto de vida de morte. Olhei do sexto andar para baixo. Salivei o cotidiano. Onde estão seus outros livros Marcelino Freire? Agora que estou aqui, mais perto das nuvens e do inferno. Com tempo para ver a lua saltar.  

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                  Foto: Blog do Marcelino

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