Por Fernanda Benevides Carvalho
Semana passada, tinha iniciado a boa campanha, junto com meu amigo Mineo, de reler esse A Árvore das Palavras, de Teolinda Gersão, e de outros livros que merecem igual tratamento, para adiar o término da leitura. À tertúlia hebdomadária de quinta-feira, Mineo!
A segunda parte é sobre Amélia, mãe de Gita, nossa protagonista de até então. Amélia se vê excluída da cidade de Lourenço Marques e, também da África, para onde partiu aos 19 anos, em busca do anúncio de jornal, o anúncio da virada de vida, que é também um vaticínio, especialmente no contexto de A Árvore das Palavras. O anúncio-prognóstico que vai selar o casamento de Amélia com Laureano. Talvez se possa apreender a metáfora dos destinos: Amélia costureirinha, uma moira que tece, mas não consegue fiar o próprio percurso, lança-se à ação dramática pelas sugestões esperançosas dos anúncios.
Lança-se ao mar! Amélia embarca, olha para Os Jerônimos, a Torre de Belém. Chovia, à partida. Tudo muito melancólico: céu cinzento, mar encapelado, nenhuma linha no horizonte, e gritos impressionantes de gaivotas agitadiças. Arrisco a dizer que Dom Sebastião estava rondando, numa galé de velas castigadas. Dom Sebastião, sim, aquele que não voltou, o baluarte dos valores dos antigos navegadores, que alertou para a derrocada iminente, se os portugueses continuassem com a lógica do oba-oba de fazer riqueza fácil.
E ela, ensimesmada, chora. Amélia chora como Ulisses, na terra da princesa feácia Nausícaa, lembrando de seu antigo amor – que tentou abiscoitar, e conseguiu, o dote de uma tal Adelina sonsa, precatada que não recebia, como ela, Amélia, as pedrinhas do amante à janela do quarto de dormir.
O relato da viagem marítima, fantástico. A costureirinha contorna toda a costa atlântica do continente africano, entra no Oceano Índico. O momento crítico ocorre na passagem do Cabo da Boa Esperança, onde o barco balança muito. Não estamos diante de nenhum feito heróico. Hoje em dia qualquer canoeiro ultrapassa o Bojador, e, mais e mais nadadores, à unha e pouco pêlo, baterão novos recordes nos próximos quinze minutos com crawl e nado-borboleta, no Canal da Mancha, como preliminares para o Pan-2007, no Rio de Janeiro. Mas o relato é fantástico por duas razões simbólicas: a rota é a mesma que os portugueses empreenderam com a grande expansão ultramarina, em direção às Índias, Amélia costureirinha cruza o continente com propósitos arrivistas de ganância; em segundo lugar, suas fantasias dos bailes da primeira classe do barco, sonho real?, ou das viagens de suas freguesas ricas, são escapes à própria condição de pobreza, que já vinha desde a vida na casa da madrinha, em Lisboa.
Amélia acaba rancorosa, isso sabemos, estava na primeira parte, foi assoprado por Gita. Agora está com expressão de não-pertencimento à rua das pedras, à segunda parte, em que ela se agiganta pelas ruas, mas é menos do que uma sombra elástica aprumada nos saltos.
Amélia está com tédio de Madame Bovary. De salto alto, uma agulha, tenta se equilibrar pelos vãos da rua pedregosa, contra todas às evidências e circunstâncias do lugar.
Os anúncios, de novo! Sugestões de aromas sofisticados dos perfumes, poses nos cafés e as maneiras artificiais que ela gostava de mimetizar das mulheres finas. Os passeios pelas vitrines elegantes, ou galerias de lojas, com seus pisos de mármore e mesas douradas, os devaneios sobre outras viagens de pessoas admiradas que sofrem charmosamente de ócio. Os anúncios são um passaporte para o glamour, mas ao mesmo tempo são o meio de que se valem as pessoas chamadas mais simples, como Amélia, como ela própria chama, gente que tem sensibilidade para ver tamanha graça neles. Uma tensão entre liberdade e necessidade se oculta na tabuleta, será?
O anúncio que visava fins matrimoniais, que ela, com seu acanhamento de costureirinha, respondeu, era este:
Cavalheiro, solteiro, trabalhador e de bons sentimentos, 30 anos, residente em Moçambique, procura menina honesta até 25 anos, para fins matrimoniais. Favor enviar fotografia, que será devolvida, caso não interesse. Assunto máxima seriedade. Escrever para: L. C. Caixa Postal nº…, Lourenço Marques, Moçambique.
E outros… “Lembrar-se-ia desses anúncios, a par dos outos, dos anúncios misteriosos que lia no jornal, em que as pessoas brincavam com o destino como se fossem comedores de fogo ou balançassem lá em cima, no trapézio, em risco de vida ou de morte, suspensos por um pé” – a segunda parte do livro é narrada em terceira pessoa, e trata das fatalidades dos anúncios.
Recortes de jornal que agora Amélia lê com diversão escancarada de Bovary velha, sonhando com um engenheiro misterioso, “oh céus, que tolice que era acreditar nessas histórias de cavalheiros honestos e de casamentos à distância”, já inteirada dos modos da sociedade com a qual se identifica, cada vez mais refratária à África. Junto com o horóscopo, eles sempre a atraíram, e o encanto permanece.
Reze nove avemarias durante nove dias e peça três desejos: um de negócios e dois impossíveis. Ao nono dia publique este aviso e cumprir-se-á mesmo que não acredite.
Oração ao Senhor dos Amarrados. Oração dos Aflitos: Aflita se viu a Virgem aos pés da cruz, aflita me vejo eu, mãe de Jesus. Mande publicar no terceiro dia e aguarde o que acontece no quarto.
Oração a Santo Onofre: Ó meu glorioso Santo Onofre, que ao monte Tabor subistes, de hera verde vos cobristes,
Cavalheiro recém-chegado da metrópole procura alojamento,
Serralheiro mecânico oferece-se para emprego compatível,
Zuze, Médium-Vidente Espiritualista e Cientista, Adaptado de Poderes Absolutos. Resolve problemas difíceis ou impossíveis em 15 dias, com eficácia e garantia. Aproxima e afasta as pessoas amadas com rapidez total. Se quer prender a si uma vida nova não perca tempo, contacte o Professor Doutor Mestre Zuze.
Amélia é uma mulher cindida, dois países, duas vidas. Como? Entre o quê? Atração e repulsa, curiosidade e medo.
É pela loteria das regras dos anúncios e pela esperança do impossível que vai ser marcada indelevelmente a personagem Amélia, diante da cidade de Lourenço Marques. Amélia: Bovary que podia ter sido e que não foi?